Carnaval como tecnologia de memória
Eu amo o carnaval por sua capacidade de assimilar, inventar e ressignificar tecnologias, criando narrativas, estimulando nossa vontade e desejo de conhecer mais, de gerar novas discussões e reforçar outras que estão em pauta.
Das fantasias mais inusitadas nos bloquinhos de rua às pirotecnias da Marquês de Sapucaí, as tecnologias são condutores de debates políticos e estéticos no carnaval.
Este ano, para além das fantasias e carros alegóricos, outra tecnologia também ganhou destaque em algumas discussões: as tecnologias de reconhecimento facial viraram notícia. Este carnaval foi o mais vigiado da história do país, como contou o companheiro Pablo Nunes em sua coluna do The Intercept Brasil lançada no início das festanças.
Foi também neste carnaval que vimos a Sapucaí brilhando luzes de LED nos braços do povo, formando um céu estrelado no desfile da Unidos da Grande Rio, convidando o público das arquibancadas a serem parte significativa do desfile.
Uma inovação para o palco do carnaval, apesar da tradição histórica das escolas de samba de produzirem um show à parte de qualquer coisa vista nesse mundo. E aqui temos um ponto.
O que me interessa nesse sentido é discutir o carnaval enquanto tecnologia de memória. Hoje, a memória é uma medida que usamos o tempo todo para nos referir aos nossos dispositivos de registro, trabalho, relacionamento: a memória do celular, do HD do computador, a memória RAM que permite armazenar mais ou menos imagens, textos, histórias. Mas essas são memórias voláteis, que apagamos ou editamos a qualquer momento.
No carnaval, especialmente este da Sapucaí – que fez e faz parte da minha formação –, as tecnologias ajudam a contar histórias de um Brasil que não está nos livros ou na nossa formação tradicional.
Protagonizado pelo povo negro e das favelas, o carnaval das agremiações e escolas de samba promove um espetáculo gigantesco que marca nossos corpos de tal forma que alimenta nossa memória e produz novos conceitos.
as tecnologias de reconhecimento facial viraram notícia. Este carnaval foi o mais vigiado da história do país.
Veja: minha mãe é paraense, de Belém, e saiu de sua terra natal ainda menina para trabalhar no Rio de Janeiro. Cresci ouvindo histórias sobre "a terra da minha mãe", as praias de água doce, que eu custava a imaginar. Como deveria ser um mar de água doce?
A viagem, cara e longa, não era uma opção para conhecer mais sobre o estado até 1993, quando o Salgueiro fez aquele desfile histórico sobre um viajante que saía do Pará e partia em um Ita rumo ao Rio de Janeiro.
Durante o desfile, minha mãe explicava o sentido de tantos barcos na avenida, a cultura do povo criado na beira de rios gigantescos e seus afluentes que cortavam a cidade e produziam economia, mobilidade, estética, educação. Ali, aos sete anos de idade, me tornei salgueirense.
Outra ligação forte e afetiva que tenho com o carnaval carioca é o fato de ter cumprido o ensino fundamental na Escola Municipal Avenida dos Desfiles, na Marquês de Sapucaí. Sim, a Sapucaí é uma escola municipal, projeto de Darcy Ribeiro e do então governador, Leonel Brizola.
Em uma dinâmica totalmente diferente do carnaval em fevereiro, durante o ano os camarotes são as salas de aula. Sempre esperei ansiosa pela transformação da escola em passarela do samba.
No carnaval, as tecnologias ajudam a contar histórias de um Brasil que não está nos livros.
Passei a acompanhar o carnaval, as inovações tecnológicas da bateria, dos carros alegóricos e das fantasias. Até hoje aprendo, com os enredos, as histórias que a história não conta, como diz o samba clássico da Mangueira de 2019.
Este ano, assisti animada aos desfiles, tão monumentais. As escolas que mais me impactaram foram justamente aquelas que trouxeram para o povo os conhecimentos que dificilmente encontramos nos livros ou na TV.
Salgueiro, Viradouro, Grande Rio contaram histórias de povos originários da América Latina e África, suas cosmologias tão poderosas que apresentam respostas ao caos que estamos vivendo.
Como onças ou serpentes que inspiram tantos mundos, precisamos transmutar nossos entendimentos sobre a memória coletiva, o meio ambiente, as relações entre os seres e as tecnologias.
Isso quer dizer, como tenho insistido nesta coluna, se abrir para a diversidade de práticas e pensamentos que estão sendo articulados fora dos circuitos que se tornaram hegemônicos.
Minha dica para o pós-carnaval é a série recém-lançada na Globoplay. "Enredos da liberdade: o grito do samba pela democracia", que conta histórias que não fazem parte da narrativa hegemônica sobre o carnaval, mas que sustentam, desenvolvem e expressam o pensamento político do povo.
A série foi baseada na pesquisa de um grande amigo, Rodrigo Reduzino, e apresenta como as escolas de samba usavam e usam das linguagem dos desfiles para se expressar e denunciar abismos sociais.
Mais que isso, os enredos e o carnaval estimulam outras formas e possibilidades para nós enquanto sociedade, da favela para o centro, do negro para o branco.