enTRUMPia

Se a “enTRUMPia” é a tempestade perfeita, o antídoto está nas margens, nos espaços de transição, onde novas formas de vida podem emergir

Crédito: BluIz60/ Getty Images

Fred Gelli 5 minutos de leitura

O retorno de Donald Trump ao poder não é apenas um evento político. É um sintoma visível de um processo mais profundo – o avanço da “enTRUMPia”, uma onda de caos que parece sem fim. Polarização radical, guerras em expansão, risco nuclear, colapso climático.

O mundo se reorganiza em torno de fissuras, não de pontes. Se a entropia é a tendência natural de qualquer sistema fechado ao colapso, Trump atua como um catalisador. Um agente de aceleração da desordem, desestabilizando instituições, corroendo o tecido da confiança social, normalizando o absurdo.

Mas será que ele é a causa ou apenas o reflexo de um processo maior? Talvez Trump não seja o vírus, mas o sintoma de uma doença autoimune global.

Em um organismo saudável, o sistema imunológico protege contra ameaças externas. Mas, quando ele falha em reconhecer suas próprias células, nasce a doença autoimune. A sociedade de hoje sofre do mesmo mal: perdemos a capacidade de reconhecer o "outro" como parte do mesmo corpo.

Não há mais adversários, apenas inimigos existenciais. O dissenso vira heresia. Redes sociais funcionam como superanticorpos desregulados, atacando qualquer pensamento divergente, enquanto o diálogo, esse tecido fino que sustenta o convívio, se rompe em cada esquina, em cada família, em cada bolha digital. O “inimigo interno” agora é uma ideia, um voto, uma crença.

O resultado? Um organismo social em estado de inflamação crônica, lutando contra si mesmo, enquanto ameaças reais, climáticas, geopolíticas, econômicas, avançam sem resistência coordenada.

Se entendermos o planeta como um grande organismo, como sugere a hipótese de Gaia, de James Lovelock, estamos diante de um colapso sistêmico que parece culminar nas ficções científicas distópicas das plataformas de streaming.

Mas a entropia, na natureza, não é necessariamente sinônimo de extinção. É muitas vezes o terreno fértil da transformação. O colapso abre espaço para o novo.

A biomimética nos ensina isso. Algumas sementes só germinam depois do fogo. O calor extremo quebra a dormência, permitindo a regeneração. O que, na nossa sociedade, está adormecido e esperando o choque do caos para despertar?

Mas a entropia, na natureza, não é necessariamente sinônimo de extinção. É muitas vezes o terreno fértil da transformação.

As redes subterrâneas de fungos e raízes nos lembram que sob o solo existe um outro mundo, invisível, mas essencial – um tecido de colaboração e interdependência. E as colônias de formigas mostram que a inteligência não precisa estar centralizada, ela pode emergir do coletivo, da soma das pequenas ações.

Talvez o que possa nos salvar não esteja no centro do sistema, mas em suas bordas – nesses territórios híbridos onde diferentes formas de vida e pensamento se encontram e se contaminam.

Na natureza, as bordas são zonas de alta biodiversidade, onde a vida é mais rica e resiliente. O encontro entre a terra e o mar, a floresta e o campo, o rio e suas margens. O equivalente social dessas bordas são os espaços onde culturas se cruzam, onde disciplinas dialogam, onde o dissenso gera fricção criativa em vez de conflito destrutivo. 

Pense nos movimentos de base, nas economias colaborativas, nas redes de solidariedade que emergem em tempos de crise. São como espécies pioneiras, que preparam o terreno para que outras possam florescer.

O orçamento participativo em algumas cidades, por exemplo, é uma forma de descentralização inspirada em ecossistemas, em que o poder de decisão circula, criando resiliência. O mesmo acontece com iniciativas de justiça restaurativa, que buscam curar feridas sociais por meio do diálogo, em vez da punição.

Mas, talvez, a lição mais importante da biomimética para esse momento seja reconhecer que não estamos fora da natureza. Somos natureza. Se ela colapsa, colapsaremos junto. Nesse sentido, as cosmologias ancestrais dos povos originários, especialmente os ameríndios, têm muito a nos ensinar.

Para eles, não existe separação entre o que é cultura e o que é natureza. A montanha, o rio, o vento, o sol e a lua são parentes. Assim como os objetos e tecnologias que produzem são também natureza.

A lição mais importante da biomimética para esse momento seja reconhecer que não estamos fora da natureza.

Para os Yanomami, por exemplo, o arco e a flecha não são apenas ferramentas de caça, eles carregam um espírito e fazem parte da relação simbiótica com a floresta. O arco representa o prolongamento da força e da intenção do caçador, enquanto a flecha, ao voar, carrega não só a energia do humano, mas também a do ambiente que a sustenta.

Na tradição dos povos do Ártico, como os Inuit, as casas de gelo são mais do que abrigos. São vistas como organismos temporários, respirando com o clima e o ritmo da comunidade. O iglu é construído com o próprio ambiente, usando neve compactada, e desintegra-se de volta ao ecossistema quando não é mais necessário, sem deixar vestígios.

Ele é parte do ciclo natural, não algo separado dele. A relação com o mundo não é de posse, mas de pertencimento. O tempo não é uma linha reta rumo ao progresso, mas um ciclo de renovação constante. 

Não se trata de romantizar o passado, mas de lembrar que existiram (e ainda existem) formas de vida que não se baseiam na ilusão da separação. Povos que compreenderam, muito antes de qualquer teoria científica, que a verdadeira força está na interdependência. 

A força criativa da evolução nunca foi sobre separação, mas sobre conexão.

Da mesma maneira talvez devêssemos reconhecer que as inteligências artificiais e outras tecnologias exponenciais são extensões do mesmo processo vital que nos criou, e possamos enxergá-las (e significa-las) não apenas como ferramentas ameaçadoras, mas partes inerentes das soluções complexas para os desafios sem precedentes que enfrentamos. Tudo é parte do problema. Tudo é parte da solução.

O que fará  a diferença será nossa capacidade de, mesmo no meio do caos, respirarmos fundo e catalisarmos a força do coletivo, pois vem daí nosso sucesso como espécie. Afinal, a força criativa da evolução nunca foi sobre separação, mas sobre conexão.

Se a “enTRUMPia” é a tempestade perfeita, o antídoto está nas margens, nos espaços de transição, onde novas formas de vida podem emergir. O caos não é o fim. É o terreno onde as sementes esquecidas finalmente encontram condições para germinar. 

A natureza não luta contra o colapso. Ela o atravessa, aprende com ele e se reinventa. Talvez seja isso que inevitavelmente precisemos fazer.


SOBRE O AUTOR

Fred Gelli é co-fundador e CEO da Tátil Design, consultoria de branding, design e inovação que desenha estratégias e experiências de m... saiba mais