Escala 6×1: uma questão de gênero, raça e classe

Para entender a luta por direitos, precisamos olhar de perto quem são os corpos que sustentam essas estruturas

Crédito: Freepik

Ana Bavon 4 minutos de leitura

A jornada de trabalho na escala 6x1 – seis dias de trabalho para um único dia de descanso – continua a ser um dos mais antigos, e ainda controversos, modelos de divisão de tempo laboral no Brasil.

Implantada como forma de maximizar a produtividade, essa jornada não representa mais o espírito do nosso tempo e, além de exaustiva, carrega uma carga social e histórica que reflete desigualdades de gênero, raça e classe.

Em tempos onde discussões sobre direitos humanos, economia do cuidado e felicidade no trabalho ganham força, a manutenção de escalas que exploram o limite físico e emocional das pessoas deve ser urgentemente reavaliada.

O PESO DO TRABALHO E O CORPO QUE AGUENTA

A filósofa e ativista Angela Davis nos ensina que, para entender a luta por direitos, precisamos olhar de perto quem são os corpos que sustentam essas estruturas.

Ao olhar a jornada 6x1, encontramos predominantemente corpos femininos, negros e de classes socialmente vulneráveis. São trabalhadoras que, muitas vezes, acumulam jornadas ao chegar em casa. É nesse ponto que a escala 6x1 transcende o campo da produção e se transforma em uma questão de dignidade e justiça social.

A economia do cuidado, onde tarefas como cuidar dos filhos, da casa e dos idosos recaem majoritariamente sobre as mulheres, se transforma em uma sobrecarga insustentável para quem já dispõe de um único dia de descanso.

Para essas trabalhadoras, o dia de folga raramente é de descanso; é mais um dia de tarefas domésticas, de cuidados com os outros. A escala 6x1, portanto, não apenas perpetua a desigualdade, mas amplifica o fosso da injustiça estrutural.

Nesse cenário, o cuidado de si, que deveria ser uma prioridade para quem contribui exaustivamente com a base da sociedade, não encontra espaço em uma jornada que na verdade é de 24x7 – 24 horas de trabalho em sete dias da semana.

DESENVOLVIMENTO SOCIAL E JORNADA HUMANA

A discussão sobre a necessidade de redução de jornada se torna ainda mais urgente ao considerarmos seu impacto no desenvolvimento social. O desenvolvimento de uma sociedade passa pelo bem-estar dos seus indivíduos. Como avançar em qualidade de vida e felicidade no trabalho quando o cansaço crônico esgota o corpo e a mente?

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A exaustão silenciosa imposta por jornadas como a 6x1 mina o engajamento, destrói a motivação e reduz as chances de uma verdadeira segurança psicológica no ambiente de trabalho.

Como falar em felicidade no trabalho quando o tempo para o descanso é insuficiente e mal administrado? Falar sobre felicidade, inclusive, exige coragem das lideranças para romper com a tradição de explorá-la como mera meta corporativa, e sim encará-la como direito.

UMA QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS

No coração desse debate, o que temos é uma questão de direitos humanos. A escala 6x1, aplicada a pessoas já historicamente marginalizadas, impõe limites que ferem o direito ao descanso digno, ao desenvolvimento e à participação plena na vida social. As empresas têm a oportunidade de dar um passo à frente nessa transformação.

Precisamos de líderes empresariais que compreendam que a proteção aos direitos humanos começa dentro de seus próprios quadros, que saibam que é possível ir além da letra fria da legislação e agir em prol de uma mudança que valorize o humano sobre o lucro.

CONVOCAÇÃO: UMA LIDERANÇA RADICALMENTE HUMANA

A mudança não virá apenas da pressão externa, mas sim da coragem interna de lideranças que escolhem abraçar a transformação. A você, liderança, que deseja uma empresa ética, íntegra e comprometida, fica o chamado: escute o corpo de seus trabalhadores, entenda as demandas reais, compreenda o impacto estrutural.

Como falar em felicidade no trabalho quando o tempo para o descanso é insuficiente e mal administrado?

Não esperemos que uma nova legislação venha para resolver a questão da exaustão, pois a revolução pode – e deve – começar dentro de cada empresa.

Para além da conformidade legal, o que está em jogo é o direito à vida plena, à saúde, ao tempo de qualidade. Isso exige uma revisão urgente de modelos ultrapassados como a jornada 6x1, um verdadeiro freio ao desenvolvimento social e econômico de uma sociedade que, paradoxalmente, clama por inovação e mudança.

O FUTURO EXIGE CORAGEM

Que a sua liderança seja a que fará a diferença. Que você tenha a coragem de reconhecer que os direitos humanos não podem ser silenciados pelas demandas da produtividade. O futuro da economia depende da saúde e dignidade dos que nela trabalham.

Para transformar o mundo, precisamos começar pela forma como tratamos aqueles que sustentam cada setor. Uma liderança radicalmente humana não espera o Estado agir – age, transforma e promove revoluções.


SOBRE A AUTORA

Ana Bavon é advogada, fundadora, CEO e Head de Estratégia da B4People. Com clientes como Gol Smiles, Bayer, Basf, Alpargatas, Raízen, ... saiba mais