Quem está sendo treinado: a IA ou nós?
Como em um truque de ilusionismo, nossa atenção pode estar sendo induzida a focar no lugar errado

Fui comprar um café. Novo privilégio? Talvez! Quando cheguei no balcão o atendente me olhou e disse: "oi, tudo bem?". Eu prontamente respondi "tudo bem, e você?".
Ele me olhou assustado, meio sorrindo, meio sem graça, sem jeito. A pessoa ao lado que aguardava o café sair assistiu a cena e de leve abriu um sorriso de canto de boca.
Era como se naquele momento eu tivesse aberto um portal, uma nova matrix. Pausa dramática. Como assim perguntar como o atendente está? Como assim alguém querer saber de verdade como você está?
Eu sei, muitos de nós queremos, sim, saber como as pessoas que ocupam funções, ditas simples, estão. Mas me causa espanto que justamente as que trabalham com o cuidar do outro(a) sejam tão invisibilizadas e que isso seja tão normalizado no nosso cotidiano.
Bom, quero traçar um paralelo entre a fala de Sam Altman, CEO da OpenAI (empresa desenvolvedora do ChatGPT), quando disse que falar “por favor” para a IA custa milhares de KWz de energia e custa milhões de dólares. O argumento é técnico, mas levanta uma questão simbólica: estamos começando a considerar a gentileza um custo?
Ele disse também que, apesar dos custos, é importante que seja assim, pois, em resumo, gentileza gera gentileza. Aliás, há até quem diga que faz isso para ficar bem na fita em uma possível revolução dos robôs. Algo como “olha, eu te tratava bem…” (rs).
O que ficou, especialmente para quem não lê além dos títulos – e que bom que você chegou até aqui – foi a mensagem crua: agradecer custa caro. Melhor não fazer.

Títulos como “dizer obrigado ao modelo custa caro”, “custa milhões de dólares”, ou a outra que diz “o custo de falar obrigado e por favor” e por aí vai.
No fim das contas, o que pode ter ficado no subliminar da mensagem foi: não peça desculpas, não agradeça e evite ternura, porque tudo isso custa tempo e dinheiro.
Sendo nós, humanos, tão moldáveis quanto as ferramentas que criamos, e por elas reprogramáveis, a ideia de eliminar a gentileza por eficiência é, no mínimo, preocupante.
Dito isso, o que acontece quando se sugere que dizer obrigado não vale mais a pena olhando do ponto de vista financeiro? Além de caro, se perde muito tempo… dirão. O que revela uma mentalidade tecnocrática que vê o tempo e o gesto como desperdício, não como vínculo importante.
agora talvez estejamos aprendendo a não querer saber uns dos outros, o que já é possível perceber nas interações atuais.
Além da já notória crise de atenção, da epidemia de solidão, da recessão das amizades, do declínio da saúde mental e da desconfiança generalizada, agora talvez estejamos aprendendo a não agradecer e não querer saber uns dos outros, o que já é possível perceber nas interações atuais.
Bom, se a premissa “primeiro nós fazemos as ferramentas, depois as ferramentas nos fazem” estiver correta, a impressão que dá é a de que estamos em um acelerado processo de involução do ideal social a partir do enfraquecimento da troca, da escuta, da gentileza e, com isso, do relacionamento entre nós, humanos.
Como em um truque de ilusionismo, nossa atenção pode estar sendo induzida a focar no lugar errado. A pergunta é: quem está sendo treinado afinal, a IA ou nós? Qual é o verdadeiro modelo em aprendizado?
Há uma urgência em repensar como nos percebemos, como percebemos os outros e o mundo ao redor. Mas, principalmente, em perceber como tudo isso nos afeta, por dentro e por fora.
Deixo aqui a reflexão.