Mercado do Tempo
Deveríamos desacelerar, reavaliar nossa relação com o tempo e resgatar valores como a contemplação, a escuta atenta e a conexão com a natureza
O mundo branco-ocidental transformou o tempo em mercadoria. Em um contexto cada vez mais acelerado e dominado pela lógica de mercado, o tempo se tornou uma moeda de troca preciosa e cobiçada.
A mercantilização, processo pelo qual o tempo é quantificado, padronizado e vendido como um bem de consumo, permeia diversos aspectos da vida social contemporânea, desde a organização do trabalho até as relações interpessoais. Máximas como “tempo é dinheiro”, ou “não tenho tempo pra isso” são ditas e ouvidas diariamente.
Um dos principais efeitos da mercantilização do tempo é a intensificação da exploração do trabalho. A lógica da produtividade e da eficiência, intrínsecas ao sistema capitalista, leva à compressão da jornada de trabalho, à flexibilização das relações trabalhistas e ao aumento da carga, muitas vezes sem a devida contrapartida salarial.
Isso gera um cenário de precarização do trabalho, no qual os trabalhadores são submetidos a longas jornadas exaustivas, com pouco tempo para descanso e lazer.
A constante pressão por otimizar o tempo e maximizar a produtividade também contribui para o aumento do estresse e da ansiedade na sociedade contemporânea. A sensação de que nunca há tempo suficiente para cumprir todas as tarefas e obrigações gera um sentimento de urgência e pressa constante, que pode levar ao esgotamento físico e mental.
não se deve “correr contra o tempo” como muitas vezes dizemos. Deve-se correr com o Tempo.
A mercantilização do tempo também impacta as relações interpessoais. A valorização da produtividade individual e a lógica do mercado podem levar à fragilização dos laços sociais, à diminuição do tempo dedicado às relações familiares e de amizade e à substituição de interações presenciais por interações virtuais superficiais.
O transporte inseguro que às vezes pegamos para chegar mais rápido ao trabalho, a apresentação do filho na escola (que perdemos o início por causa do trânsito), a dor nas costas que já passou a fazer parte do corpo por não conseguirmos ir ao médico… Tudo isso são pequenos e alarmantes sinais de que nossa relação com o tempo está, de alguma forma, conturbada.
TEMPO CIRCULAR
Em contraste com a lógica ocidental linear e fragmentada, os povos indígenas tecem uma relação profunda e multifacetada com o tempo, transcendendo a mera mensuração cronológica e se conectando com ciclos naturais, memórias ancestrais e a sabedoria da Terra.
Ailton Krenak, filósofo, escritor e liderança indígena, emerge como um das principais vozes dessa cosmovisão, convidando-nos a repensar nossa própria percepção temporal e reconhecer a riqueza da ancestralidade indígena. Para Krenak, o tempo não se resume a uma sequência linear de eventos, mas sim a um fluxo cíclico e interconectado, onde passado, presente e futuro se entrelaçam em um presente eterno.
Essa visão circular do tempo se manifesta na profunda conexão dos povos originários com a natureza, reconhecendo os ritmos dos ciclos naturais como guias para a vida em comunidade.
A ancestralidade, pilar fundamental da cosmovisão indígena, permeia a relação com o tempo. Os ensinamentos dos antepassados, transmitidos através da tradição oral, da memória coletiva e dos rituais sagrados, servem como bússola para as gerações presentes, conectando-as à sabedoria ancestral e à responsabilidade com o futuro.
As cosmovisões originárias nos soam como um respiro diante da lógica do tempo imposta pela sociedade moderna, marcada pela aceleração, pela fragmentação e pela obsessão com o futuro. Essa visão nos distancia da natureza, da ancestralidade e da dimensão espiritual do tempo, levando à exploração predatória dos recursos naturais, à negação da história e à perda do sentido de comunidade.
SABEDORIAS ANCESTRAIS
Quando pensamos os povos negros, percebemos que o tráfico negreiro transatlântico, um dos capítulos mais sombrios da história da humanidade, impôs uma ruptura brutal em sua relação com o tempo. Arrancados de suas terras, culturas e famílias, os africanos foram forçados a se adaptar a uma nova realidade marcada pela escravidão, pela violência e pelo distaciamento de suas identidades.
Em terras estrangeiras, a percepção do tempo se tornou um instrumento de dominação e controle. O tempo da sociedade ocidental foi imposto aos africanos escravizados, negando-lhes a conexão com seus ciclos ancestrais e com sua própria história. No entanto, mesmo em meio à opressão, a resistência e a reinvenção se fizeram presentes.
As religiosidades afro-brasileiras são um exemplo disso. Elas se configuram como espaços de reconexão com o tempo ancestral. Por meio da crença e da prática religiosa, pessoas negras preservam seus valores, fortalecem suas identidades e constroem pontes entre o passado, o presente e o futuro.
A valorização da produtividade individual e a lógica do mercado podem levar à fragilização dos laços sociais.
Dentro destas tradições, Tempo é orixá. É vivo. Por isso, não se deve “correr contra o tempo” como muitas vezes dizemos. Deve-se correr com o Tempo.
Assim, é importante evocar uma "desaceleração", um convite a reavaliar nossa relação com o tempo e resgatar valores como a contemplação, a escuta atenta e a conexão com a natureza. Através da retomada de saberes ancestrais e da valorização da memória coletiva, podemos construir uma sociedade mais harmônica, sustentável e conectada com os ciclos naturais.
O tempo não é uma mercadoria, como as lógicas ocidentais contemporâneas nos tem feito acreditar. O tempo é a própria vida, em seu fluxo e essência. E vidas não podem – ou não deveriam – ser vendidas e compradas.
É fundamental refletir criticamente sobre as lógicas temporais e buscar alternativas que promovam uma relação mais saudável e equilibrada com o tempo, valorizando o bem-estar individual e coletivo, as relações interpessoais e a autonomia individual.
Ao abraçarmos uma visão circular e interconectada do tempo, podemos tecer uma relação mais profunda com a natureza, com os antepassados e com as futuras gerações.