Mulheres do mundo

Crédito: master1305/ iStock

Silvana Bahia 7 minutos de leitura

Outubro está fervendo no Rio. A chegada da primavera e o avançar do ano sempre trazem novos ares, personagens e eventos para a cidade. Quem é do corre sabe: segundo semestre é de luta!

O mês começou com a Rio Innovation Week, um dos maiores eventos de negócios, tecnologia e inovação da América Latina. Mais de duas mil startups se encontraram para apresentar seus projetos e desafios de sustentabilidade diante de um mercado cada vez mais agressivo (e desigual).

Os conceitos "fechados" precisam ser reeditados ou completamente refeitos diante da catástrofe socioambiental que estamos vivendo.

A programação gigantesca de debates e palestras possibilitou trocas importantes entre lideranças mais conservadoras do mundo dos negócios e pensadores contemporâneos, críticos do capitalismo como conhecemos, como Achille Mbembe e Ailton Krenak, que certamente foram capazes de inspirar a juventude empreendedora a repensar algumas práticas correntes.

Participei de alguns momentos da feira justamente com a intenção de mover algumas peças que parecem enrijecidas demais para a transformação. No debate "Lideranças femininas em ESG" me apeguei ao alerta das imposições de gênero nas estruturas de mercado.

Lideranças femininas têm demonstrado mais empatia, menos competitividade e mais disposição para tomadas de decisão que levam em conta a diversidade e os impactos socioambientais.

Crédito: Marcelo Piu/ Prefeitura do Rio

Não tive oportunidade de aprofundar as questões de ESG apropriadamente, mas deixo aqui um fio solto: é preciso olhar com muita cautela para os critérios que definem o desempenho das empresas (principalmente das grandes corporações).

Os conceitos "fechados" – de meio ambiente, impacto social e governança – precisam ser reeditados (ou completamente refeitos) diante da catástrofe socioambiental que estamos vivendo. Fica a dica para o mercado.

Também participei do painel "Mulheres na ciência, tecnologia e inovação: fomento e estímulo". Minha questão central é como promover a inclusão e a permanência de mulheres negras na ciência e na tecnologia.

é preciso olhar com muita cautela para os critérios que definem o desempenho das empresas, principalmente das grandes corporações.

Tenho entendido que é preciso rever a ciência que conhecemos e como poderemos pensar em métodos e processos que levem em conta as subjetividades de quem vive os fenômenos mais extremos.

A filósofa Isabelle Stengers acaba de lançar a versão traduzida de seu livro "Uma outra ciência é possível" e reivindica uma desaceleração dos processos científicos, tornados tão perversos e atropelados pelas demandas do mercado no último século.

Para mim, essa desaceleração virá dos modos como povos tradicionais e em diáspora estão pensando o mundo. Essa nova ciência se fará de encontros. E também das outras formas de pensar o mundo. O cinema é uma delas.

RIO INTERNATIONAL FILM FESTIVAL

Esse mês a cidade respirou cinema com o Festival do Rio. Foram dezenas de mostras e centenas de filmes de todo o mundo que promoveram debates, os mais diversos. Me encontrei com amigas e mulheres realizadoras que me fazem acreditar em um audiovisual brasileiro mais inclusivo, inovador e diverso.

Uma novidade é a inclusão de séries apoiadas por canais de streaming que agora passam a fazer parte da programação oficial do festival. Assisti os dois primeiros episódios de "Amar é Para os Fortes", série dirigida pela minha companheira de vida Yasmin Thayná, que desponta no mercado brasileiro de audiovisual. A série foi criada e escrita por Camila Agustini, em parceria com Antonia Pellegrino e Marcelo D2.

"Amar é para os fortes" (Crédito: Amazon Prime Video/ Divulgação)

A obra conta a história de mulheres negras, mães que tiveram suas vidas atravessadas pela violência do Estado, ainda tão masculino, machista e opressor. Participei de um debate com os realizadores e estou ansiosa por ver a série na TV.

Ainda me impressiona (e orgulha) ver o crescimento do protagonismo de mulheres no cinema brasileiro. 2023 foi o ano recorde de prêmios femininos. Me emocionei ao assistir "Levante", da querida Lillah Halla, ganhar o prêmio de melhor direção e montagem de ficção.

O filme é protagonizado pela já grande Ayomi Domenica, que interpreta a jovem Sofia, uma adolescente negra e bissexual que passa por um processo doloroso e violento de tomada de decisão sobre a interrupção de uma gravidez indesejada.

O núcleo central é composto por um grupo de meninas-mulheres em descoberta de um gênero feminino cada vez mais fluido, diverso, cheio de camadas de complexidade e afeto. Um filmaço para assistir assim que estiver nas telonas do país.

FESTA LITERÁRIA DAS PERIFERIAS

Cinema e literatura sempre caminharam juntos na minha formação cultural e social. Desde 2012 acompanho o crescimento da FLUP, a Festa Literária das Periferias, que também acontece em outubro.

Estive na primeira turma para jovens escritores, em 2012, e lembro quando meus companheiros Julio Ludemir e Ecio Salles (in memorian) articulavam diferentes mundos para produzir uma primeira turma a fim de celebrar a produção literária das periferias, sempre tão disruptivas.

Em 2023, mais de 10 anos depois da primeira edição, o festival segue vivo e em expansão, sempre ocupando as periferias da cidade. Este ano, a FLUP acontece aos pés do Morro da Providência, a primeira favela do Rio.

Nesse território sagrado, que também chamamos Pequena África, a programação do festival homenageia a poesia de Machado de Assis e o legado de Mãe Beata de Iemanjá.

Não é à toa. Machado foi embranquecido pelas tecnologias racistas que forjaram a produção intelectual do século 20. Será preciso desfazer movimentos instituídos para rever as histórias que nos contaram. Machado de Assis é nosso preto velho.

A figura e presença de Mãe Beata também mobiliza e reivindica tecnologias. Afinal, a oralidade é um modo ancestral, transcendente e futurista de pensar o mundo. Foi assim, nas palavras ditas (e não necessariamente escritas), que Mãe Beata resistiu ao racismo religioso e se tornou nossa referência para a manutenção e celebração das religiões de matriz africana.

FESTIVAL MULHERES DO MUNDO

Por fim, e não menos importante, o mês intenso de outubro acaba com o WOW – Festival Mulheres do Mundo. É a elas que dedico este texto. Sou parceira do evento desde a primeira edição, em 2018, e acompanho a curadoria e produção feita por mulheres, para mulheres.

No WOW, sempre experimento na prática a ideia de interseccionalidade que aprendi com o movimento de mulheres negras brasileiras. Situadas, implicadas nos processos mais profundos de conformação de raça e gênero, as mulheres participantes desse acontecimento emanam arte, cultura, política, tecnologia, religião – esses atravessamentos cotidianos de nossas vidas femininas.

Crédito: Divulgação

Nós, da PretaLab, interessadas em caminhar para o futuro com nossas mulheres diversas e poderosas, vamos oferecer uma oficina sobre a (suposta) inteligência artificial por trás dos aplicativos de chatbots como o Chat GPT.

Eu e Gabi Agustini, com quem divido a direção do Olabi, nos juntamos a Samantha Reis e Amanda Silva para desvendar modos de usar algumas dessas plataformas para o bem comum. Como tenho insistido aqui nesta coluna (e na vida), será possível imaginar futuros férteis e saudáveis com apoio da IA.

as mulheres participantes desse acontecimento emanam arte, cultura, política, tecnologia, religião – esses atravessamentos cotidianos de nossas vidas femininas.

No WOW também acontece a primeira edição presencial do Aquilomba PretaLab, um espaço de trocas entre mulheres negras para articulação de comunidades através de diferentes tecnologias. Nicole Pessoa vai mediar um debate sobre análise de dados e inteligência artificial.

Talvez você que está lendo esse texto (e chegou até aqui) tenha acompanhado, de alguma forma, essas tantas programações que aconteceram na cidade este mês. Essa não é, definitivamente, uma agenda cultural. Mas tenho me apegado a alguns detalhes importantes que vão me atravessando nessa rotina tão acelerada e que, ao mesmo tempo, reivindica cada vez mais calma.

Perceber as presenças e detalhes importantes na correria da vida é uma prática que deve ser exercitada dia após dia. Só assim perceberemos o que importa. Vamos juntas e juntos costurar redes mais complexas, entendendo como os agenciamentos se dão e propondo futuros mais diversos.

Nos vemos no Festival das Mulheres do Mundo.


SOBRE A AUTORA

Silvana Bahia é codiretora executiva no Olabi – organização dedicada a diversificar a cena de tecnologia e inovação no Brasil. Fellow ... saiba mais