O coração não conhece limites

Independentemente de qualquer limitação que seu corpo possa apresentar, se seu coração quiser de verdade, você chega lá

Créditos: Jogos Paralímpicos de Verão 2016/ Fernando Maia/ MPIX/ CPB/ Alexander Kovalev/ Pexels

Fred Gelli 7 minutos de leitura

No dia 7 de setembro de 2016, às oito da noite, a contagem regressiva começava: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0. Nesse exato momento, o atleta norte-americano Aaron Wheelz "dropa" uma mega rampa de skate de 30 metros, construída sob a supervisão de Bob Burnquist, e salta por dentro de um zero cenográfico, dando um mortal perfeito, pousando do outro lado para o delírio e a surpresa da plateia de 60 mil pessoas que lotavam o Maracanã naquela noite histórica. 

O primeiro recado estava dado: não tenham pena desses caras! Eles são atletas incríveis que brigam por cada décimo de segundo em uma competição, que farão quase o impossível pela oportunidade de subir em um pódio representando seus países de origem.

Assim começava a cerimônia de abertura dos Jogos Paralímpicos Rio 2016. Resultado do trabalho de um super time de mais de 500 pessoas, com alguns dos melhores profissionais do mundo, que não mediram esforços para fazê-la inesquecível.

A responsa era maior ainda por conta do sucesso da abertura olímpica que arrebatou o mundo pouco mais de um mês antes. A missão de concebê-la na íntegra nos foi dada. A mim, ao Vik (Muniz) e ao Marcelo (Rubens Paiva).

Tudo com a produção corajosa e leve do nosso querido e saudoso Flávio Machado. Foram dois anos e meio de trabalho intenso, muita pesquisa, e muitos, muitos aprendizados!

Ouvir, por exemplo, do próprio Marcelo, que essa história de superação era papo furado, pois ele e muitas outras pessoas com deficiências não se sentiam superando nada. Seguiam suas vidas com os desafios e prazeres que todos nós temos. Ver o Marcelo brincando com os filhos que pegavam carona em sua cadeira de rodas elétrica em percursos sinuosos só confirmava essa perspectiva.

Muitas das nossas certezas e crenças iam sendo desmontadas a cada encontro com atletas e ex-atletas que nos mostravam como era fácil se equivocar mesmo com as melhores intenções.

Ouvir de um atleta de ponta que naquele momento, depois do acidente que lhe tirou as duas pernas, ele era muito mais feliz, pois finalmente tinha encontrado um propósito para sua vida, nos ajudava a enxergar o que aquela cerimônia realmente deveria celebrar. 

Independentemente da configuração do seu corpo, das suas limitações de mobilidade e sentidos, quem manda mesmo é o coração. Pois ele não conhece limites! Ele é o que nos torna iguais em nossa condição verdadeiramente humana.

Cheguei ali vindo de experiências anteriores da criação das marcas olímpicas (uma história à parte), mas também da paralímpica, em que já tínhamos, todo o time da Tátil, mergulhado profundamente no universo dos valores, dos desafios e do caráter super inspirador dessa turma, no intuito de representá-los por meio de uma identidade forte e pertinente. 

E foi nesse desafio – que, diferentemente da identidade olímpica, na qual corpos são representados de mãos dadas em um grande abraço evocando união e celebração – que entendemos que essa não trataria de corpos.

A marca paralímpica deveria traduzir a energia infinita que esses atletas têm de sair do fundo do poço, quando perdem eventualmente uma parte de seus corpos, até o alto do pódio.

Essa era a trajetória que queríamos representar. Os arquétipos do coração e do símbolo do infinito foram nossa inspiração para traduzir a potência dessa motivação. E mais do que isso.

A marca paralímpica, assim como a olímpica que já tinha sido tridimensional, agora deveria ser também multissensorial, para que todos, independentemente das características de seus corpos, pudessem interagir com a identidade que os representava. 

Ela pulsava em luz e vibração, reagindo à aproximação das pessoas. Quando tocada, entrava em ressonância, por um som que misturava a batida do coração com os sons de uma torcida. Difícil explicar, mas dá para ver no vídeo abaixo, E funcionou de uma maneira única. 

Um dos momentos mais emocionantes foi quando Ádria Santos, uma das nossas maiores medalhistas paralímpicas, no dia do lançamento, com dezenas de fotógrafos e jornalistas à sua frente, se aproxima da marca sem que nada tivesse sido planejado e  começa a interagir com ela sentindo o som, a pulsação do coração.

Ela não contém a emoção e começa a chorar dizendo que era a primeira vez em sua carreira de 20 anos como atleta paralímpica cega que podia finalmente interagir com a marca que a representava.

A marca paralímpica deveria traduzir a energia infinita que esses atletas têm de sair do fundo do poço até o alto do pódio.

Claro que ninguém conseguiu segurar o choro, do Andrew Parsons, presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro na época, até o assistente que segurava o microfone na hora da entrevista. 

E esse era o universo de possibilidades criativas que nos foi aberto na concepção da cerimônia do dia 7 de setembro de 2016. Como traduzir aquela energia infinita, a resiliência daqueles atletas, o espaço que desafiava nosso senso comum e nos inspirava a encontrar a poética e a força plástica e simbólica do que veríamos durante os jogos que começariam no dia seguinte? 

Além do clássico desfile dos atletas que culmina com a montagem de um grande quebra-cabeça com a foto de todos eles no meio do Maracanã, tivemos ainda 13 segmentos que, aos poucos, foram contando a história que tínhamos imaginado.

Crédito: Gabriel Heusi/ brasil2016.gov.br

De Amy Purdy, atleta norte-americana de snowboard bi amputada – que, depois de aulas intensivas de samba com Alice Gelli, minha filhota e assistente criativa em todo o projeto, dança com um grande robô,  mostrando a relação da tecnologia com o humano – até a coreografia de dois bailarinos cegos que tinham seus movimentos parametrizados em imagens táteis gigantes. 

Da coreografia de grandes velas que teimam em velejar contra o vento com a missão de formar os “agitos” até o momento em que o Maracanã vira um grande coração, pulsando em luz e no som das palmas e batidas de pé de milhares de pessoas.

Mas foi no imprevisto que a mágica de fato aconteceu. Perto do momento de acender a pira paralímpica no Maracanã, a atleta Márcia Malsar corria com dificuldade por conta das sequelas de sua paralisia cerebral.

A chuva começava a cair e ela segurando a tocha acesa perde o equilíbrio e cai. Silêncio profundo. Duas pessoas da produção se aproximam para ajudá-la. Uma pega a tocha que continuava acesa.

Crédito: Reprodução/ YouTube

Nós, na cabine de controle, nos olhamos aflitos, pois tudo poderia acabar ali se ela tivesse se machucado. Mas, na sequência, ela faz um sinal positivo para os jovens que a ajudavam, segura a tocha novamente e enfim volta a correr. Nessa hora o Maraca vai abaixo, em aplausos, gritos e assobios celebrando sua coragem. 

Bom, não preciso dizer que esse foi o momento mais emocionante de toda a minha trajetória profissional. As lágrimas transbordavam na horizontal e nessa hora olhei para o Vik, o Marcelo e a Paula Melo, nossa super líder criativa, fundamental em todo o processo, e todos aos prantos nos demos conta que, depois desse tempo todo de projeto, de todo o investimento em cenários, figurinos e equipamentos, ali, naquele momento único e impensável, naquele que poderia ter sido o acidente que colocaria tudo a perder, é que nosso conceito se materializava da maneira mais clara e potente.

    Diante de um Maracanã incrédulo, Márcia Malsar fazia valer a força de seu coração para levar, mesmo que com seu corpo frágil, o fogo paralímpico até a pira.

    O coração realmente não conhece limites. Independentemente de qualquer limitação que seu corpo possa apresentar, se seu coração quiser de verdade, você chega lá!  Que venham os Jogos Paralímpicos Paris 2024, mais uma vez nos mostrando que só a força do coração pode de fato mudar o mundo!


    SOBRE O AUTOR

    Fred Gelli é co-fundador e CEO da Tátil Design, consultoria de branding, design e inovação que desenha estratégias e experiências de m... saiba mais