O extraordinário no comum

Enquanto tentamos ser mais produtivos a cada dia, “perder tempo” com o que nos encanta se torna, paradoxalmente, cada vez mais necessário

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Ricardo Moreno 3 minutos de leitura

Viajar é essencial para mim. Preciso estar em movimento, explorar lugares e redescobrir outros onde não vou há tempos. Gosto de me perder em destinos desconhecidos, correr riscos que não encararia na minha cidade. É a viagem que renova meu olhar e o que me faz valorizar o prazer de voltar para casa.

Mas e se esse encantamento não precisasse ficar restrito aos momentos em que estamos longe? E se o desafio fosse justamente esse: manter o olhar de turista nas ruas e esquinas da nossa rotina?

Esse olhar, que transforma o simples em extraordinário, pode ser exercitado a qualquer momento – sem passaporte, malas ou planos. Mas exige treino.

A pandemia me deu essa lição na prática, naqueles dias em que o auge da aventura era uma volta na quadra ou uma caminhada até a praça. Micro aventuras. Descobri que pequenas escapadas podem ser tão renovadoras quanto o sabático no Sudeste Asiático ou o mochilão pela Europa. 

Já pensou em explorar seu bairro com a disposição de um turista – ou de uma criança, com os olhos de quem vê muitas coisas pela primeira vez? Observar as fachadas dos prédios, as árvores, os detalhes das cores… Pegar outra rua, aventurar-se em um novo bairro – esses desvios do automático abrem espaço para descobertas e tiram a gente da zona de conforto.

Um dos muitos prazeres que tenho em São Paulo, onde moro, é andar de bicicleta. Aos fins de semana, logo cedo, costumo sair pra pedalar sozinho por lugares que não conheço – ou que visito pouco.

Recentemente, descobri um canto na Liberdade que parecia saído diretamente de Tóquio: repleto de luzes e sons, com dezenas de máquinas de todos os tamanhos, onde as pessoas tentam pegar bichos de pelúcia com aquelas garras de metal. 

Algumas semanas antes, me encontrei no mezanino de um edifício comercial dos anos 1970, cercado por frequentadores – em sua maioria homens na faixa dos 50 anos – todos vestidos como se fossem versões do Flavor Flav, um dos integrantes do grupo de rap norte-americano Public Enemy.

Já pensou em explorar seu bairro com a disposição de um turista com os olhos de quem vê muitas coisas pela primeira vez?

E até dentro de casa esse espírito pode encontrar espaço. Por que a sensação de estar em um hotel deveria ser privilégio exclusivo das viagens? Gosto de cuidar do apartamento onde moro para que seja tão acolhedor quanto um desses quartos, com aromas que evocam boas memórias, iluminação que favorece o relaxamento, trilha que me transporta para outros mundos.

Recentemente, estive em Istambul e fui até Bebek, um bairro charmoso com vista para o Bósforo, onde cafés, lojas de grife e restaurantes convivem com a atmosfera tranquila de um refúgio à beira-mar. Caminhando por suas ruas, me deparei com uma loja da Assouline, a editora de luxo fundada nos anos 1990 em Nova York.

Saí da pequena loja, situada no subsolo de um edifício residencial, com uma vela que, além de decorar, me transporta de volta àquela tarde de outono à beira do Bósforo. Sem guias de viagem, só pude descobrir esse endereço porque me dispus a me perder e caminhar sem pressa pelo bairro.

Enquanto tentamos acumular produtividade e preencher cada minuto com algo “útil”, permitir-se perder tempo com o que encanta parece um luxo. Uma pesquisa da Universidade de Stanford mostra que momentos de contemplação, seja diante de uma paisagem ou de uma cena rotineira, têm o poder de reduzir o estresse e a ansiedade.

Istambul (Crédito: prmustafa/ iStock)

Outro estudo, publicado na "Psychological Science", revela que, quando desaceleramos e passamos a observar mais, aumenta nossa capacidade de memória e foco. Não dá para limitar essa prática somente aos momentos em que estamos viajando. Precisamos aplicá-la no cotidiano.

O cantor e compositor uruguaio Jorge Drexler, na música "Cinturón Blanco", provoca justamente essa atitude de curiosidade e abertura, usando a faixa branca de um lutador iniciante como metáfora:

Desprogramemos pilotos automáticos e agendas [...] Tropecemos como principiantes [...] Com a mesma pedra que antes prometemos não pisar [...] Até que nos deem novamente [...] A faixa branca

Talvez essa seja a verdadeira revolução: desprogramar o piloto automático, desaprender o que a rotina nos condicionou e nos permitir redescobrir o mundo ao nosso redor.

Cultivar esse olhar fresco é lembrar que o extraordinário pode estar muito mais perto do que imaginamos – basta esquecer tudo o que aprendemos e voltar à faixa branca, como se tudo fosse a primeira vez


SOBRE O AUTOR

Ricardo Moreno é fundador do The Summer Hunter, plataforma de conhecimento e conteúdo que aborda o lado solar da vida em newsletters, ... saiba mais