O futuro sem equidade de gênero: um mundo distópico de desigualdades

O futuro sem equidade de gênero não é inevitável, mas as sementes para sua construção já estão sendo plantadas no presente

Crédito: Fast Company Brasil

Ana Bavon 8 minutos de leitura

A primeira vez que li um livro de George Orwell fiquei maravilhada com a sua capacidade de nos fazer imaginar distopias e entrar em contato com um vocabulário absolutamente sem sentido e cheio de significados. Lia "1984" enquanto acontecia a maravilhosa disseminação da tecnologia acessível no Brasil e no mundo.

Não demorou muito para que minha cabeça navegasse em um mundo de fantasias onde o Big Brother nos transformaria em produtos mal acabados de uma manipulação social milimetricamente planejada e implementada.

Depois de Orwell, as distopias se tornaram assunto de enorme interesse para mim, não apenas pela sua alegoria mas, principalmente, por sua capacidade de traduzir realidades possíveis mas dificílimas de serem assumidas pela mente humana mais otimista.

Quando comecei a escrever este artigo, estava lendo números do retrocesso na agenda de gênero pelo mundo. O cerceamento de direitos que estavam teoricamente garantidos, como o direito ao aborto em alguns estados dos EUA, me fizeram lembrar do ovacionado "O conto da Aia", romance distópico de Margaret Atwood.

Na história, Atwood descreve uma sociedade regida por dogmas religiosos, na qual as mulheres não têm direitos fundamentais, estando a mercê das regras que são escritas por homens para que os sirvam e sirvam à sociedade com a única coisa para a qual nasceram: a servidão e a procriação.

Pois bem, diante de tantos backlashes e retrações na agenda de gênero, resolvi escrever minha distopia. Um futuro socialmente injusto e desigual que desenhamos hoje por meio das decisões que não tomamos, ou por meio daquelas que tomamos sem intencionalidade alguma.

O ano é 2200 e a sociedade global alcançou um nível tecnológico e econômico sem precedentes. A inteligência artificial domina os principais setores industriais e de serviços, a medicina praticamente erradicou doenças e a longevidade se tornou assunto obsoleto.

A exploração espacial tornou-se rotina e o turismo se expandiu em níveis inimagináveis. O meio ambiente agora é regido por IA e a natureza é tudo aquilo que quisermos. Já a alimentação, essa corresponde ao que entendíamos por vitaminas, ninguém mais perde tempo com isso.

No entanto, por trás de toda essa fachada de progresso, a humanidade falhou em um aspecto crucial: a equidade de gênero e suas interseccionalidades.

basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.

A promessa de um futuro igualitário, que parecia possível no início do século 21 por meio de ações globais orquestradas pela sociedade civil, por parte do mercado e de reguladores de negócios, agenda ESG, ONU e outras iniciativas, foi soterrada por políticas de backlash, retração e retrocessos sociais que consolidaram a desigualdade.

O mundo de 2200, embora tecnologicamente avançado, é marcado por uma profunda segregação entre homens e mulheres. A segregação de gênero e raça é institucionalizada, naturalizada e promovida como projeto de manutenção de poder.

O século 21 começou com avanços significativos no que tange aos direitos das mulheres, principalmente aqueles fundados na igualdade de direitos e oportunidades, como acesso e ascensão profissional.

Movimentos de mulheres ao redor do mundo conquistaram leis que promoviam a igualdade salarial, o acesso ao aborto seguro, a proteção contra a violência de gênero, entre outras conquistas, como o respeito à maternidade independente do formato das famílias.

Crédito: Freepik

No entanto, o crescimento de movimentos conservadores e a ascensão de governos autoritários, aliados a uma recessão global em meados do século, desencadearam um retrocesso brutal.

Aconteceu exatamente como escrevia aquela escritora que foi banida das bibliotecas, Simone de Beauvoir: “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes”.

As primeiras medidas foram sutis: a revogação de políticas de ação afirmativa e a redução dos investimentos em programas de desenvolvimento de carreira e negócios geridos por mulheres. Lentamente, o acesso a direitos fundamentais foi sendo restringido, como o acesso à saúde e ao aborto seguro em casos de estupro.

Na construção de um futuro mais justo, as mulheres negras ocupam um lugar central como agentes transformadoras da sociedade.

As mulheres passaram a ser segregadas no mercado de trabalho, voltando a ocupar, em sua maioria, posições de servidão, cuidado e aquelas consideradas “destinadas” para seu gênero.

Na educação, os currículos foram ajustados para diferenciar a formação de meninas e meninos desde cedo, incentivando as primeiras a carreiras “mais emocionais” ou voltadas ao cuidado, enquanto os homens eram preparados para liderar em ciência, tecnologia, engenharia, matemática, além de negócios e artes.

Engenharia, ciência e finanças tornaram-se áreas inacessíveis para as mulheres, que, pela legislação de 2100, foram formalmente excluídas de profissões consideradas “de alta complexidade racional”.

A SOCIEDADE DA DESIGUALDADE

A desigualdade de gênero não apenas estagnou, mas também voltou a ser uma característica estrutural da sociedade. Como no princípio de tudo, em algumas culturas, leis de propriedade limitaram a capacidade das mulheres de herdar ou possuir bens, votar ou ter conta em banco sem autorização do cônjuge. Em certos países, os direitos políticos foram suprimidos, já que essa também se tornou uma função de alta complexidade. 

Casamentos arranjados e sistemas de controle familiar voltaram a ser a norma e a vida das mulheres passou a ser regida e dirigida pelos homens. A reprodução passou a ser controlada de forma rígida, como no romance de Atwood mencionado no início: algumas culturas passaram a conduzir uma política de fertilidade obrigatória. Toda mulher nasceu para ser mãe e, se assim não fosse, não teria serventia para a sociedade.

O advento das tecnologias de vigilância digital tornou ainda mais ativo o controle sobre as mulheres, no melhor estilo Black Mirror. Na maioria dos países, as mulheres são monitoradas por sistemas de IA que regulam sua mobilidade, interações sociais e até sua saúde.

Pequenas infrações ou comportamentos desviantes resultam em punições severas, como o confisco de benefícios, restrições de viagem e, em casos extremos, o confinamento em “casas de ajuste”.

Série "O Conto da Aia" (Crédito: Hulu)

Apesar da realidade assombrosa, mulheres em todo o mundo continuam a resistir, assim como no começo. Na construção de um futuro mais justo e igualitário, as mulheres negras ocupam um lugar central, não apenas como protagonistas da resistência, mas também como agentes transformadoras da sociedade.

Sua luta histórica contra múltiplas camadas de exclusão – o racismo, o sexismo e o classismo – faz com que elas tenham uma compreensão única sobre as dinâmicas de poder e desigualdade. É exatamente essa perspectiva interseccional que as torna essenciais no rompimento dessa distopia onde a desigualdade de gênero impera.

Ao longo da história, as mulheres negras têm sido peças fundamentais na luta por direitos civis, justiça social e equidade de gênero. Desde a época da colonização até os movimentos contemporâneos de direitos civis, temos demonstrado uma resiliência extraordinária diante de sistemas de dominação.

O preço de ignorar a luta por equidade de gênero de forma interseccional é uma sociedade profundamente injusta e desumana.

No entanto, nossas contribuições muitas vezes são invisibilizadas ou desvalorizadas pela narrativa histórica dominante.

Nos Estados Unidos, líderes como Sojourner Truth e Harriet Tubman não apenas lutaram pela abolição, mas também pela igualdade de gênero, desafiando tanto a supremacia branca quanto o androcentrismo.

No Brasil, mulheres como Tereza de Benguela, que liderou o quilombo de Quariterê, e Dandara dos Palmares, guerreira na resistência contra a escravidão, são exemplos da resistência organizada de mulheres negras.

Foi invocando essa força ancestral que as mulheres negras se tornaram agentes fundamentais no resgate da dignidade e no refazimento do tecido social. Uma sociedade mais justa, inclusiva e equânime só seria possível se construída também através de suas perspectivas. Afinal, era preciso a experiência de quem aprendeu a viver sempre apesar de.

O FUTURO DA DISTOPIA DE GÊNERO E SUAS INTERSECCIONALIDADES

O cenário de 2200 revela uma sociedade devastada pela falta de equidade de gênero e raça. Enquanto as elites masculinas colhem os frutos da inovação tecnológica e econômica, as mulheres vivem uma existência subjugada, sem direitos, poder de voz  ou perspectiva de futuro.

As consequências dessa segregação são sentidas em todos os aspectos da vida: as desigualdades são amplificadas, a criatividade e o potencial humano são severamente limitados e a violência de gênero atinge níveis inimagináveis.

Esta distopia não é apenas um conto fictício sobre um futuro distante. Ela serve como um alerta poderoso sobre os perigos do retrocesso e da falta de vigilância na proteção dos direitos das mulheres que acontece agora.

Dandara dos Palmares (Crédito: Reprodução/ Redes Sociai)

O preço de ignorar a luta por equidade de gênero de forma interseccional é uma sociedade profundamente injusta e desumana, onde o potencial humano é sobrepujado e a liberdade individual se torna um privilégio de poucos.

As mulheres negras ocupam um espaço crucial na desarticulação de eventuais retrocessos e backlashs. Nossa vivência nos coloca em uma posição de liderança nas discussões sobre justiça social, pois trazemos à tona a necessidade de abordagens mais inclusivas, que atendam a todas as mulheres, e não apenas àquelas pertencentes a grupos hegemônicos que ocupam o poder.

O futuro sem equidade de gênero não é inevitável, mas as sementes para sua construção já estão sendo plantadas no presente. Cabe à humanidade como um todo e, em especial, àqueles e àquelas que têm o poder da caneta nas decisões corporativas, decidir qual caminho a humanidade vai trilhar: o da igualdade e justiça ou o da obsolescência e desigualdade institucionalizada.


SOBRE A AUTORA

Ana Bavon é advogada, fundadora, CEO e Head de Estratégia da B4People. Com clientes como Gol Smiles, Bayer, Basf, Alpargatas, Raízen, ... saiba mais