O invisível que governa o mundo

Governar, hoje, é lidar com o invisível: aquilo que não se mede nos relatórios trimestrais, mas define o que permanece

portas que se abrem para jardins
Crédito: Eoneren/ Getty Images

Ana Bavon 4 minutos de leitura

As empresas tornaram-se organismos vivos que respiram pelas decisões de suas lideranças. Cada escolha, ainda que técnica, financeira ou operacional, produz ondas invisíveis que atravessam territórios, relações e futuros.

Governar, hoje, é lidar com o invisível: aquilo que não se mede nos relatórios trimestrais, mas define o que permanece.

A ilusão de controle, herança de um tempo industrial e previsível, desmoronou. Vivemos o entrelaçamento de dois mundos: o VUCA, volátil e ambíguo, e o BANI, frágil e não linear.

Bauman já nos alertava que a modernidade líquida dissolveu as certezas e exigiu que aprendêssemos a flutuar em meio à incerteza. O que ele talvez não imaginasse é que, nesse novo oceano, os líderes não são mais capitães que traçam rotas, mas mergulhadores que precisam aprender a respirar debaixo d’água.

Como escrevi no meu primeiro livro "Por organizações radicalmente humanas", o futuro é uma consequência inevitável do agora; não um destino distante, mas o resultado das decisões que tomamos e das omissões que toleramos.

Talvez o maior exercício de liderança do nosso tempo seja compreender que é melhor gerir expectativas do que consequências. Porque o amanhã começa exatamente aqui, no que fazemos, escolhemos e sustentamos.

O COLAPSO DAS CERTEZAS E O NASCIMENTO DA CONSCIÊNCIA

Durante décadas, ensinamos lideranças a dominar processos e otimizar recursos. Hoje, o desafio é outro: compreender consequências. Liderar deixou de ser administrar previsibilidade e passou a ser sustentar coerência.

O ritmo da boa governança é o da escuta, não o da velocidade.

Governança, neste novo tempo, não é apenas o conjunto de estruturas que garantem integridade e transparência. É o exercício coletivo da consciência, a capacidade de perceber os efeitos humanos, sociais e éticos das decisões corporativas.

Airton Krenak nos convida a desacelerar a marcha do progresso e “adiar o fim do mundo” para reencontrar o sentido da vida comum. Essa pausa é também o gesto político que falta às lideranças: parar para escutar o que o sistema tenta silenciar.

DO COMANDO À COERÊNCIA: O DESLOCAMENTO DO PODER

O psiquiatra e filósofo Frantz Fanon escreveu que a libertação começa quando o sujeito toma consciência de si e do outro. Transportada ao ambiente corporativo, essa ideia revela um deslocamento essencial: o poder não está mais em decidir sobre, mas em decidir com. Afinal, “a verdadeira libertação é interna”, escreveu Fanon.

O líder do futuro precisa de menos autoridade formal e mais autoridade ética, aquela que nasce da coerência entre o que se diz, o que se faz e o que se permite acontecer.

O futuro deixou de ser previsível – e passou a ser consequencial.

As habilidades clássicas, gestão de risco, domínio técnico, controle de processos, continuam absolutamente necessárias, mas já não bastam. O que o século 21 exige é lucidez moral, humildade cognitiva e coragem institucional.

O líder consciente é aquele que se reconhece parte de uma teia e entende que cada decisão corporativa é também uma decisão sobre pessoas e territórios.

AS NOVAS HABILIDADES DA LIDERANÇA LÚCIDA

Governar o invisível requer habilidades que não se aprendem em manuais de gestão:

  1. Lucidez moral: perceber o impacto das decisões antes que ele se transforme em dano.
  2. Escuta sistêmica:compreender o que os indicadores não mostram, mas o contexto grita.
  3. Coragem institucional: sustentar o que é certo, mesmo quando o mercado cobra o contrário.
  4. Humildade cognitiva: aceitar a incompletude como motor de aprendizagem.
  5. Responsabilidade intergeracional: entender que cada ato de hoje constrói o mundo que outros habitarão.

Essas competências não são acessórios do líder ético; são o próprio fundamento de sua legitimidade.

A DECISÃO COMO ATO DE IMPACTO

Toda decisão é um ato político. Aprovamos orçamentos, escolhemos fornecedores, definimos políticas de diversidade, e, ao fazê-lo, decidimos quem prospera e quem é deixado à margem.

Liderar é decidir o que permanece quando o poder já não basta.

A governança social nasce justamente dessa consciência: a de que não há neutralidade nas decisões empresariais.

Na linguagem corporativa, Bauman nos ensina que o lucro legítimo é aquele que não destrói os laços que o sustentam. O capital, sem ética, é apenas força bruta; com ética, torna-se força civilizatória.

O LEGADO COMO MEDIDA DE GOVERNANÇA

Krenak nos lembra que “o amanhã não é um lugar distante, é um tempo que já começou”.
O legado não é o que se deixa no futuro, mas o que se sustenta no agora.

Por isso, o líder contemporâneo precisa ser um curador de consequências, alguém capaz de perceber que o impacto real da sua atuação não está apenas no crescimento da empresa, mas na transformação do ecossistema em que ela existe.

Governar o invisível é, no fim, um ato de consciência radical.  E essa talvez seja a mais humana das tarefas de nosso tempo.


SOBRE A AUTORA

Ana Bavon é advogada e estrategista especializada em governança social, impacto corporativo e responsabilidade institucional, fundador... saiba mais