O meteoro, o bufão e meu primeiro carro chinês
De fábrica do mundo, símbolo de bugigangas baratas e mão de obra explorada, a China passou a ser referência global em quase todas as frentes

Se tem uma coisa que aprendi, tendo a natureza como principal fonte de inspiração há tanto tempo, é que, na jornada evolutiva, não existe jogo ganho para ninguém.
Você pode ter a força e o tamanho de um Tiranossauro rex, um histórico de dominação absoluta do planeta por mais de 150 milhões de anos mas, da noite para o dia, tudo pode mudar. Ser extinto, perder relevância, na verdade, é o destino inexorável de tudo que existe no universo.
A entropia, o colapso, abrem espaço para o novo. Nem as estrelas escapam. Às vezes, o fim é puro acaso – como o meteoro do tamanho do monte Everest que caiu no Golfo do México, não dando chances aos dinossauros. Mas, muitas vezes, é mais caprichoso e conta com a ajuda ativa do próprio candidato à extinção.
A arrogância, a miopia ou o sucesso desmedido podem ser causas diretas do declínio de pessoas, empresas ou impérios. A história está cheia de exemplos. E, mesmo assim, seguimos tropeçando nas mesmas pedras.
Trabalhando com branding e design há 35 anos, já vimos muitas marcas enfrentando o desafio de renovar sua relevância. O grau de transformação necessário varia conforme o tamanho do gap e o tempo que essas organizações levam para reagir.
- DeepSeek: tudo o que você precisa saber sobre a IA chinesa que está revolucionando o mercado
- É oficial: chinesa BYD ultrapassa Tesla nas vendas globais de carros elétricos
- Como a restrição à venda de chips de IA levou à criação do DeepSeek
- A população chinesa está encolhendo – e a competitividade do país também
Costumo dizer que não existe âncora evolutiva mais pesada do que o próprio sucesso. Marcas que brilharam por muito tempo tendem a resistir às mudanças necessárias para seguir vivas – e, às vezes, é tarde demais.
O meteoro das startups com pouco a perder é impiedoso. Outras se perdem tentando imitar os concorrentes, abandonam sua natureza e não vão longe. Agora, poucas vezes vi marcas suicidas. Aquelas que, de uma hora para outra, passam a negar tudo o que construíram ao longo de décadas: valores, propósitos, visões. E o resultado?
Basta acompanhar o noticiário global para entender o que está acontecendo com o império norte-americano. Como é possível que uma das marcas mais poderosas do planeta – a marca USA – esteja sendo tão maltratada? Tudo começa pelo CEO. Donald Trump é a caricatura perfeita para encarnar a decadência do país.
O nível de bizarrice e irracionalidade não parece ter fim, assim como a apropriação política e ideológica da máquina pública em nome dos caprichos tresloucados (e cruéis) do homem laranja, deixando até alguns de seus maiores apoiadores de cabelo em pé.
A arrogância, a miopia ou o sucesso desmedido podem ser causas diretas do declínio de pessoas, empresas ou impérios.
É verdade que muitas de suas ideias e valores sempre fizeram parte do DNA de uma parcela relevante da sociedade norte-americana. Mas agora, como em vários lugares do mundo, a caixa de Pandora foi aberta – e os monstros estão soltos.
O sonho americano – das oportunidades para todos, da mistura, da liberdade, da democracia como farol do mundo – virou um pesadelo, principalmente para os milhões de imigrantes que ajudaram a construir o país. E quanto à democracia? Acho que está na hora de reavaliarmos seu verdadeiro significado.
O jornalista Bruno Torturra diz que hoje ela virou o “nome de guerra do capitalismo”. Os multibilionários já não precisam disfarçar o tamanho de sua influência na política e nas decisões do Estado. O que é melhor para poucos se sobrepõe ao que seria melhor para todos.
E o mais impressionante: onde está a oposição? O Partido Democrata e boa parte da sociedade parecem paralisados diante do colapso de tudo que ainda sustentava a confiança global no país – o que, segundo pesquisas recentes, já vem corroendo a imagem da marca USA mundo afora.

Mas a evolução é implacável. E não deixa espaço vazio. Quando uma espécie entra em decadência, outras avançam. E é exatamente essa a posição da China no atual ecossistema planetário. Ela vem trabalhando duro, com a disciplina e a visão estratégica que uma cultura de cinco mil anos oferece.
Nem as lideranças chinesas mais otimistas podiam imaginar que o adversário facilitaria tanto, fazendo tantos gols contra. O que não diminui a eficiência dos movimentos chineses em todas as áreas do conhecimento humano.
Liderança absoluta em número de doutorandos. Vanguarda tecnológica. Transferência de renda sem precedentes, com a formação de uma classe média de 800 milhões de pessoas. Talvez, o mais surpreendente: começou a ocupar outro espaço, muito além da geopolítica ou da economia – um lugar na cabeça e até no coração das pessoas.
Na minha cabeça, com certeza, ela já ocupa. Primeiro, por ser a única nação com apetite e capacidade de resistir às bravatas do bufão. Depois, porque venho sentindo na pele os efeitos concretos dos investimentos em branding que a China vem fazendo. E marca, afinal, é a coerência entre storytelling e store doing. E eles vêm entregando.
O sonho americano virou um pesadelo, principalmente para os milhões de imigrantes que ajudaram a construir o país.
De fábrica do mundo, símbolo de bugigangas baratas e mão de obra explorada, a China passou a ser referência global em quase todas as frentes: das IAs à sustentabilidade (sim, é hoje a única nação que leva o Acordo de Paris a sério e investe pesado em mudanças climáticas); da exploração espacial às maiores inovações em medicina.
Mas é no storytelling que vêm as maiores surpresas. A assinatura “Welcome to the real world”, usada por centenas de influenciadores chineses no TikTok, virou um tapa na cara – especialmente dos norte-americanos – sobre a decadência da marca USA.
Um dos vídeos mais virais mostra um chinês falando inglês perfeito, num cenário Pinterest, desafiando os EUA a fazerem uma revolução interna para conter a decadência.
Ele lembra que, durante décadas, a relação com a China gerou riqueza para os dois lados – mas, enquanto por lá o dinheiro foi investido em educação, saúde, mobilidade e cidades modernas, nos EUA virou iates, jatinhos e concentração absurda de riqueza.

Chama os norte-americanos de viciados em consumo. E cada vez mais pobres. E o pior: parece que a carapuça serviu.
Claro que a China tem problemas, e muitos nem conseguimos acessar, por conta da censura e da falta de liberdade. Mas, quando estudantes são presos dentro de universidades dos EUA por protestarem contra massacres de civis patrocinados por um aspirante a ditador, de que liberdade estamos falando?
Ah, mas lá não se pode usar WhatsApp ou assistir ao YouTube. Liberdade, então, é poder entregar seus dados às big techs norte-americanas que moldam o curso da história?
Nem as lideranças chinesas mais otimistas podiam imaginar que o adversário facilitaria tanto, fazendo tantos gols contra.
“Welcome to the real world.” É esse o convite que está ecoando pelo mundo. E que, além de revelar uma China surpreendente – bem distante dos clichês –, também escancara o contraste com a propaganda tóxica e as fake news ocidentais.
Agora, os chineses parecem mesmo estar dando mais espaço para que o próprio povo mostre o país por dentro. Centenas de vídeos exibem os novos sentidos do “Made in China”: cidades incríveis (e cafonas), restaurantes estrelados, comunidades agrícolas tradicionais, tecnologias, inovação – tudo no scroll do TikTok.
Foi nesse contexto que, querendo comprar um carro novo – um que me levasse o mais perto possível da natureza, por trilhas e estradas alternativas –, acabei, para minha própria surpresa, escolhendo um carro chinês. A decisão não foi só porque o carro é incrível, ou porque custava quase a metade do Jeep que eu estava de olho.
Foi exatamente porque não era norte-americano.
Era chinês.
