O pragmatismo da natureza e a invenção do amor

Crédito: Fast Company Brasil

Fred Gelli 6 minutos de leitura

Com a irresponsabilidade exploratória que o ofício de designer me confere, gosto de imaginar uma sessão de brainstorming dos “criativos da natureza” diante de um briefing complicado como este: como garantir que os pais tomem conta de seus filhotes indefesos por anos a fio, sem medir esforços, alimentado-os, protegendo-os de predadores, ensinando tudo o que precisam aprender para que um dia, se tudo der certo, possam ganhar autonomia?

Blocos de post its já tinham sido gastos com ideias extravagantes e pouco promissoras quando alguém pergunta: E se nós fizermos os pais se apaixonarem por seus filhos? De tal maneira que dariam a própria vida se necessário? 

Nessa hora, como o time criativo da “evolução” é sempre multidisciplinar, o expert em bioquímica se empolga: "Poderíamos criar uma combinação de sensações incomparáveis de vínculo, conexão e prazer em ver a prole protegida e crescendo! Eu tenho uns hormônios que devem funcionar. Oxitocina, vasopressina… Vou testar".

Fazemos qualquer coisa por nossos filhotes e experimentamos um tipo de sensação incomparável em vê-los crescer.

E naquele momento inspirado na jornada evolutiva que nos trouxe até aqui, estavam inventando algo revolucionário: o amor. Uma complexa e sofisticada estratégia fisiológica que o neurobiólogo chileno Humberto Maturana chamava de adesividade biológica – definida como o processo de união dos elementos do mesmo grupo ou espécie, que envolve o prazer, a necessidade de estar junto e, diretamente, o amor em todas as suas formas. 

Ok. A ideia parecia ter potencial, mas na roda criativa o atendimento que recebeu o briefing pergunta: “como vamos garantir que os pais vão se apaixonar no primeiro instante? 

O designer do time coloca uma ideia incrível na roda: “e se eles fossem fofos? A gente pode fazer com que as proporções da cabeça, dos olhos, os barulhinhos e os movimentos sejam absolutamente irresistíveis! Uma solução multissensorial. Todo filhote vai ser fofo e a oxitocina faz o resto.”

Crédito: JBryson/ iStock

Bom, o resto é história. Esse pacote criativo que mistura fofice e os sentimentos mais poderosos vem garantindo que os filhotes venham sendo protegidos e cuidados por milhares de gerações. Quem tem filhos sabe que, muitas vezes, a única coisa que faz com que a gente não aperte o pescoçinho deles quando começam a espernear porque querem algo que não queremos dar é o fato de sermos completamente apaixonados por eles. 

Fazemos qualquer coisa por nossos filhotes e experimentamos um tipo de sensação incomparável em vê-los crescer. E é assim que a natureza, em seu pragmatismo infinito, escolheu induzir um comportamento fundamental para perpetuação da vida. Fazendo isso por meio do desejo. 

E claro que, para que os filhotes existam, algumas das mesmas substâncias já teriam sido usadas para criar o

A natureza não coloca um grama de energia produzindo um atributo que seu cliente não valoriza.

engajamento original. O ímpeto da reprodução era um briefing anterior que já tinha sido devidamente endereçado com alguns temperos adicionais, como a dopamina, o estrogênio e a testosterona entrando em cena com efeitos incríveis – como o frio na barriga, a sensação de euforia e perda de controle e a disposição infinita que só existe na paixão manifesta. Segundo Schopenhauer, somos enganados pelo amor. A natureza usa esse artifício para chegar aonde ela quer chegar. 

E está tudo bem. Porque o mais incrível de tudo isso é que ela foi generosa e nos presenteou com o olhar poético sobre isso tudo. O que seria de nós sem os versos de Vinícius, Drummond e Adélia Prado? Sem Romeu e Julieta, sem Riobaldo e Diadorim? 

E é aqui que eu quero chegar. A natureza entendeu em bilhões de anos de evolução que o desejo, a atração, o interesse e o vínculo são muito mais efetivos para criar comportamentos desejáveis do que a culpa ou o medo.

Segundo os gregos, em se tratando de amor, ela criou oito variações dessa cola poderosa que nos ajudou a ser quem somos como espécie. Eros, Philia, Mania, Pragma, Storge, Philautia e Ágape. Esse, o amor incondicional. O amor por todas as coisas. Talvez um pouco em falta em nossa sociedade individualista e desigual.

Eros e Psiquê (Crédito: Wikipedia)

O encantamento e a sedução valem no reino vegetal. Quando uma flor se abre cheia de cores, formas e fragrâncias ela está colocando em ação uma estratégia criativa incrivelmente sofisticada e bem-sucedida de engajar pássaros e insetos para que estes espalhem suas informações genéticas por meio do pólen sendo deixado de flor em flor. 

Uma iniciativa de marketing genial – 90% das espécies de plantas usam flores para se reproduzir – que usa o desejo para garantir ROI para a espécie. E que ainda por cima é absolutamente customizada para suas audiências específicas, pois a natureza opera há bilhões de anos com big data. As flores polinizadas por insetos são aromáticas e não precisam ter cor. Já as polinizadas por pássaros são o inverso, pois eles, de um modo geral, não sentem cheiros e são atraídos pelas flores mais coloridas e vibrantes. 

A natureza não coloca um grama de energia produzindo um atributo que seu cliente não valoriza. Mais uma vez, um comportamento específico e pragmático a serviço da perpetuação e disseminação da vida sendo estimulado pelo desejo, pelo bom design. A natureza engaja pelo desejo e não pela culpa.

Crédito: Pexels

Já quando olhamos para o gigantesco desafio que temos no horizonte de induzir comportamentos mais sustentáveis nas pessoas, temos usado majoritariamente a estratégia inversa: o engajamento, ou a tentativa de, pela culpa, pelo medo. Quando mostramos a tartaruga com o canudo de plástico no nariz, as florestas em chamas nas campanhas de ONGs, o menu de ficção científica dos serviços de streaming, só vemos imagens negativas e distópicas.

Convites que soam como ameaças. O problema maior talvez esteja exatamente aí. Nosso cérebro, que fisiologicamente

A natureza entendeu que o desejo, a atração, o interesse e o vínculo são muito mais efetivos para criar comportamentos desejáveis do que a culpa ou o medo.

pouco mudou nos últimos cem mil anos, tende a reagir às ameaças fugindo ou evitando-as, porque, afinal de contas, a mesma motivação da invenção do amor – fazer com que o vivo siga vivo – vale aqui. Por conta disso, tendemos a não considerar essas imagens, esses conteúdos, como convites para novos comportamentos e tendemos a rejeitá-los. 

Sendo assim, à luz da biomimética, a inspiração que vem da “inteligência natural” parece fazer mais sentido se queremos fazer novos convites, se queremos engajar a sociedade para que ela desenvolva novos hábitos, seja o de realmente se responsabilizar pelo lixo que gera, comer menos carne, deixar o carro na garagem para reduzir a poluição das grandes cidades. Ou produtos que durem mais, reduzindo o lixo que geramos, alimentos veganos que seduzem carnívoros mais vorazes, bicicletas elétricas pelas cidades ou transporte público impecável fazendo, naturalmente, o carro preso no engarrafamento ser a pior opção. E por aí vai.

Está na hora de usarmos todo o talento criativo que nos foi presenteado pela evolução para investir em ideias e soluções que possam representar novos convites que se transformem em novos comportamentos. Ou, como diz Brian Collins, referência do bom design norte-americano: torne o futuro tão irresistível que ele se torne inevitável.


SOBRE O AUTOR

Fred Gelli é co-fundador e CEO da Tátil Design, consultoria de branding, design e inovação que desenha estratégias e experiências de m... saiba mais