O que é liberdade para Zuckerberg?
Carine Roos, pesquisadora em tecnologia, gênero e direitos humanos, fala sobre a decisão da Meta de abrandar o controle sobre postagens nas redes sociais
O recente discurso do CEO da Meta, Mark Zuckerberg pode até parecer um comunicado técnico sobre a atualização das regras da sua empresa. Mas a verdade é que o chefão de uma das big techs vem a público com um statement. E, como sempre, não podemos nem piscar ou perdemos as linhas finas do perigoso contrato que assinamos dia após dia com a Meta.
Ali, em seu posicionamento, está o reflexo direto das tensões ideológicas e políticas que atravessam o mundo contemporâneo. Zuckerberg diz defender uma nova “liberdade” na Meta: aquela "nada de novo sob o sol" que, disfarçada de inovação, perpetua o status quo e reforça estruturas de poder que beneficiam uma minoria privilegiada.
É inquietante ouvir um bilionário da tecnologia falar de liberdade de forma tão seletiva. Ela pertencerá àqueles capazes de manipular narrativas, desestabilizar governos e prosperar no caos.
Estamos assistindo à consolidação de uma hegemonia digital, onde as regras não são estabelecidas por governos democráticos, mas pelas plataformas nada neutras que mediam nossas vidas online.
Para aprofundar a análise desse cenário, conversamos com Carine Roos, pesquisadora em tecnologia, gênero e direitos humanos, com mestrado em Gênero pela LSE. Fundadora da Newa e autora da newsletter "The Hidden Politics of AI" (As políticas escondidas da IA), Carine analisa o impacto das big techs em direitos digitais e governança democrática, com foco no Sul Global.
Como você vê o conceito de liberdade que Mark Zuckerberg defende?
Carine Roos – Zuckerberg apresenta um conceito de liberdade que, à primeira vista, parece amplificar vozes, mas que, na prática, perpetua estruturas de poder existentes. A "liberdade" promovida pela Meta é seletiva, permitindo que certos atores com maior alcance e recursos manipulem narrativas e ampliem desigualdades. Essa abordagem distorce o ideal de liberdade, pois privilegia a influência de poucos sobre a segurança e os direitos da maioria.
A Meta está se tornando uma força que supera os governos na definição de regras. Qual a sua previsão para o futuro das relações entre setor privado e governo? E relações internacionais?
Carine Roos – A Meta e outras big techs já se posicionam como potências regulatórias, moldando regras que afetam milhões de pessoas sem a transparência ou a legitimidade que governos democráticos devem oferecer.
No futuro, veremos tensões crescentes entre plataformas e estados, com governos tentando recuperar soberania regulatória enquanto enfrentam o lobby agressivo das empresas.
Internacionalmente, as big techs podem atuar como intermediárias de influência política, muitas vezes alinhadas a interesses econômicos e geopolíticos específicos, o que ameaça as estruturas multilaterais e os princípios de direitos humanos.
Essa mudança reflete o excepcionalismo americano digital? Como isso impacta a soberania de outras nações?
Carine Roos – Sim, o comportamento da Meta reflete o excepcionalismo americano digital, no qual as big techs impõem seus próprios interesses globais, muitas vezes ignorando legislações locais. Isso impacta diretamente a soberania de outras nações, que são forçadas a se adequar às regras de empresas sediadas nos EUA.
Esse cenário enfraquece os estados, principalmente aqueles do Sul Global, dificultando a implementação de políticas que protejam os direitos digitais e o equilíbrio democrático.
Mark Zuckerberg cita China, Europa e América Latina e as sinaliza como adversários ideológicos e regulatórios. Qual o impacto disso?
Carine Roos – Ao destacar regiões como adversárias, ele reforça a narrativa de uma competição ideológica e regulatória. A China é vista como uma força tecnológica autoritária; a Europa, como uma defensora de regulamentações mais rigorosas; e a América Latina, como um território vulnerável à desinformação e instabilidade política.
Isso polariza ainda mais o equilíbrio de poder, dificultando colaborações globais e exacerbando tensões entre diferentes abordagens de governança digital.
A falta de regulação e o modelo de Notas Comunitárias podem aumentar a desinformação. Como isso afeta as democracias?
Carine Roos – Sem regulação adequada, o modelo de Notas Comunitárias da Meta pode legitimar desinformações ao criar a ilusão de consenso. Em democracias, isso enfraquece a confiança em processos eleitorais, instituições públicas e na própria mídia.
É crucial que o marco regulatório seja revisado para equilibrar o poder dessas empresas.
A amplificação de narrativas falsas e discursos polarizadores prejudica o debate público, contribuindo para a fragmentação social e a ascensão de movimentos antidemocráticos.
Você acredita que as batalhas geopolíticas agora serão travadas nas redes sociais?
Carine Roos – Definitivamente. Redes sociais são hoje um campo de batalha onde narrativas são moldadas, governos são desestabilizados e opiniões públicas, influenciadas.
A combinação de desinformação, manipulação algorítmica e ausência de regulamentação adequada torna essas plataformas armas geopolíticas, capazes de moldar a direção de conflitos e alianças internacionais.
Como governos podem proteger a soberania e a democracia sem cair no risco de censura?
Carine Roos – Governos precisam estabelecer marcos regulatórios que protejam a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, responsabilizem plataformas por danos causados por desinformação e discursos de ódio.
Isso exige transparência no uso de algoritmos, imposição de auditorias independentes e colaboração internacional para garantir que legislações locais sejam respeitadas sem comprometer princípios democráticos.
Com as eleições de 2026 no Brasil, qual o papel das plataformas na estabilidade ou desestabilização do processo democrático?
Carine Roos – As plataformas digitais terão um papel central na sociedade contemporânea, sendo ferramentas de disseminação de informações, mas também potencializadoras de desinformação.
Sem um marco regulatório forte e eficaz, o risco de amplificação de narrativas falsas e discursos polarizadores cresce exponencialmente, ameaçando tanto a democracia quanto os direitos humanos fundamentais.
O Projeto de Lei da Inteligência Artificial, atualmente em tramitação na Câmara, adota uma abordagem preocupante ao flexibilizar a responsabilização das plataformas, excluindo algoritmos de redes sociais da categoria de alto risco e tornando facultativa a avaliação preliminar de riscos para a maioria dos sistemas.
Essas decisões priorizam interesses corporativos, enfraquecendo mecanismos de proteção coletiva e a integridade do processo democrático. É crucial que o marco regulatório seja revisado para equilibrar o poder dessas empresas, garantindo maior transparência e responsabilidade no uso de algoritmos.
Apenas com leis mais sólidas será possível construir um ambiente digital que realmente proteja os direitos humanos e fortaleça a democracia.