O RH do futuro é o RH em frequência humana

O RH do futuro não é o mais digital, nem o mais ágil – é o mais coerente

Crédito: FG Trade/ Getty Images

Ana Bavon 6 minutos de leitura

O prêmio Human Leaders da Fast Company Brasil quer reconhecer os profissionais de RH que estão contribuindo para a construção de um ambiente inovador, acolhedor e saudável. Saiba mais sobre a iniciativa, que tem entre os conselheiros a colunista Ana Bavon.

Há algo curioso acontecendo no mundo corporativo: todos querem falar sobre o futuro do trabalho, mas poucos estão dispostos a escutar o que o trabalho – esse corpo social pulsante – tem tentado dizer há décadas.

Faz tempo que as pessoas avisam: estão cansadas de incoerência, de lideranças que terceirizam o cuidado, de estruturas que esvaziam o propósito e de sistemas que falham em protegê-las da própria máquina que as emprega.

Não se trata de retórica. Trata-se de escuta institucional. E talvez esse seja o maior desafio do RH contemporâneo: aprender a escutar o mundo.

ESCUTAR O MUNDO EXIGE MAIS DO QUE TRANSFORMAR PROCESSOS

Exige rever fundamentos. O RH não pode continuar a existir como uma engrenagem de suporte técnico ou emocional isolado – é hora de se tornar núcleo estratégico de responsabilidade social interna, com interlocução direta com sustentabilidade, jurídico, finanças e governança.

Essa transição exige coragem. Exige que o RH reconheça que, sozinho, não sustentará agendas de diversidade, inclusão e saúde mental. Exige que se recoloque como guardião de valores estruturais, não como executor de demandas táticas.

Exige, sobretudo, que compreenda que o capital humano de uma organização não é uma abstração gerencial – é a sociedade em estado bruto, atravessando diariamente as portas do escritório.

O futuro não está chegando – ele já exige respostas

Ao contrário do que muitos manuais sugerem, a transformação digital não é apenas uma agenda técnica. Ela altera as bases do contrato simbólico entre pessoas e empresas.

A automação, a vigilância algorítmica e a inteligência artificial nos colocam diante de dilemas éticos e estratégicos incontornáveis: quem tem o direito de ser invisível? Quem está sendo substituído antes mesmo de ser reconhecido?

Fala-se muito de inteligência artificial e pouco de inteligência institucional.

Da mesma forma, a crise climática não é um tema exclusivo das áreas de sustentabilidade. Seus efeitos reconfiguram a saúde, o deslocamento, a permanência e a vida das pessoas – especialmente as mais vulneráveis. O RH, se pretende falar de cuidado, precisa se posicionar também sobre justiça climática.

Essa visão é central no que defendo como um RH radicalmente humano – expressão que, em meu livro "Por organizações radicalmente humanas", representa mais do que empatia ou escuta ativa.

Falo de um RH que compreende sua função institucional na arquitetura do poder corporativo. Que se responsabiliza pelo impacto organizacional sobre os corpos, os territórios e o tempo de vida das pessoas. Que se recusa a ser setor de amenidades num mundo em colapso.

O QUE SE DESENHA COMO RH DO FUTURO NÃO É SUFICIENTE

Os dados mais recentes das consultorias globais revelam o tamanho da contradição: 56% das empresas dizem estar reformulando seus RHs digitalmente. Mas apenas 8% conseguem transformar dados em decisões inteligentes.

Fala-se muito de inteligência artificial e pouco de inteligência institucional. As lideranças se orgulham de acelerar processos, mas não sabem o que fazer com o silêncio organizacional, o cansaço ético ou a recusa silenciosa ao engajamento performático.

O quiet quitting, a busca por propósito e a crise de felicidade no trabalho não são fenômenos isolados. São sintomas de um modelo que perdeu sua coerência narrativa.

E nenhuma plataforma digital vai resolver isso.

O RH QUE ESCUTA O MUNDO TRABALHA EM OUTRA FREQUÊNCIA

Ele não responde apenas a indicadores internos, mas a transformações sociais inadiáveis. Ele age com sofisticação técnica e responsabilidade institucional. Ele não espera que as pessoas se adaptem à cultura – ele pergunta o que precisa ser reformado para que a cultura seja justa, sustentável e significativa.

É nesse horizonte que proponho os oito pilares para um RH do futuro, que deseje existir com relevância nos próximos anos.

OITO PILARES DE UM RH RADICALMENTE HUMANO

1. Coerência institucional

Mais do que boas práticas, é preciso garantir que as decisões da liderança, as métricas de desempenho e as políticas internas estejam alinhadas aos valores que a empresa declara defender. O RH não deve ser apenas executor de políticas, mas curador da coerência organizacional.

2. Responsabilidade social interna

O impacto social não começa do lado de fora. Começa no cuidado com quem sustenta a operação diariamente. Um RH radicalmente humano assume o compromisso de traduzir justiça social em políticas de remuneração, promoção, cuidado, permanência e escuta.

3. Governança da cultura

A cultura não é um espírito coletivo incontrolável – ela é moldada por estruturas de poder, símbolos, incentivos e omissões. O RH precisa assumir a governança da cultura organizacional com o mesmo rigor com que se governa risco, reputação e integridade.

4. Interseccionalidade estrutural

Diversidade não pode ser um índice isolado. É necessário compreender como gênero, raça, classe, território, deficiência e outras dimensões estruturam as trajetórias dentro das empresas. Isso exige dados, metodologia e compromisso de transformação real.

Recrutador de RH selecionando candidato por tablet
Crédito: Freepik

5. Escuta como tecnologia social

Não basta abrir canais de escuta – é preciso instituir a escuta como tecnologia de decisão. Processos, lideranças e metas precisam ser redesenhados a partir do que se ouve das pessoas, não apenas do que se espera delas.

6. Justiça climática como princípio de cuidado

Um RH do futuro não ignora o presente climático. O deslocamento, a saúde mental, a alimentação, a segurança e a permanência das pessoas estão sendo diretamente afetadas. Cuidado e sustentabilidade não são agendas paralelas – são faces da mesma ética.

7. Reintegração estratégica

RH não é um departamento: é uma inteligência estratégica que precisa operar em sinergia com responsabilidade social, ESG, jurídico, comunicação, compliance, finanças e governança. A gestão de pessoas é, antes de tudo, gestão da integridade institucional.

8. Inovação com propósito humano

Tecnologia, IA e automação não devem ser substitutos da presença, mas instrumentos de ampliação de sentido. Um RH radicalmente humano não teme o futuro – ele o desenha a partir de princípios. E sabe que nenhuma inovação vale o silêncio ou a exaustão das pessoas.

OUVINDO O MUNDO, RESPONDENDO COM CORAGEM

O RH do futuro não é o mais digital, nem o mais ágil – é o mais coerente. O que entende que escutar o mundo não é uma tendência, mas uma responsabilidade institucional.

Porque onde há gente, há política. Onde há trabalho, há sociedade. E onde há sociedade, sempre haverá uma pergunta incômoda a ser respondida: o que estamos fazendo com a vida das pessoas?


SOBRE A AUTORA

Ana Bavon é advogada e estrategista especializada em governança social, impacto corporativo e responsabilidade institucional, fundador... saiba mais