O valor do que é realmente original e o miojo criativo

O que uma ideia precisa ter para mudar o mundo?

Crédito: Philip Thurston/ iStock

Fred Gelli 6 minutos de leitura

O dia era 19 de maio de 1967. O local, Brian Epstein Saville Theatre, em Londres. 

As especulações na imprensa eram de que algo realmente novo seria apresentado ao mundo e que tinha tudo para surpreender, até os maiores entusiastas da banda mais famosa de todos os tempos.

"Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band", dos Beatles, não só cumpriu a promessa, mas segue sendo considerado um dos 10 álbuns mais importantes de toda a história da música. Ganhou dois Grammys, foi sucesso instantâneo de público, influenciou não só a música dali para frente, mas a arte, a moda e a cultura.

De alguma forma, dá para dizer que essa explosão criativa – que contou com técnicas de gravação completamente revolucionárias, instrumentos nunca usados no pop como cítaras e tablas e ainda uma capa icônica desenhada por Jann Haworth e Peter Blake – se transformou em uma obra-prima atemporal e mudou o mundo.

O que uma ideia precisa ter para mudar o mundo? O que faz com que pessoas consigam metabolizar ingredientes que já estão por aqui – são sete notas musicais, 118 elementos químicos na tabela periódica e um bom punhado de palavras – de uma forma completamente nova? O que é realmente original, o que surpreende, choca, desmonta padrões, quebra regras?

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Pode ser uma música, uma teoria científica, um manifesto artístico ou uma revolução. O fato é que essas ideias, quando são realmente originais, viram marcos, impactando para sempre nosso jeito de entender o passado, viver o presente e, o mais importante, imaginar o futuro. Pois a partir delas novas possibilidades se abrem. 

O que Albert Einstein, Pablo Picasso, Heitor Villa-Lobos, Marie Curie, Igor Stravinsky, Santos Dumont, Tarsila do Amaral, Mahatma Gandhi, Carolina Maria de Jesus e Pelé têm em comum?

Parece que primeiro eles sempre estiveram mais dispostos a correr riscos, experimentando mais, tanto no sentido técnico, mas também cultural e social, quebrando regras e paradigmas estabelecidos.

Ao mesmo tempo, parecem ter tido a capacidade de catalisar as latências de seu tempo. O que já estava no ar e ninguém conseguiu canalizar até ali. Eles não estavam apenas recombinando o que já tinha sido feito antes. Não estavam apegados ao lugar seguro, ao que já deu certo. Eles apostaram no novo.

O fato é que, sem ideias e soluções verdadeiramente originais, dificilmente conseguiremos construir futuros desejáveis.

Mas, acima de tudo, parece que todos eles conseguiram criar algo realmente original exatamente por terem a coragem de se manter conectados às suas origens, respeitando o que lhes foi particular em suas trajetórias e tirando dali os insumos para propor o novo. 

Steve Jobs criou os diferenciais da Apple a partir das suas experiências de vida, incluindo o fato de ter sido adotado, sua viagem à Índia e seu interesse em caligrafia. Frida Kahlo, em sua abordagem artística revolucionária, basicamente expõe as cicatrizes de uma vida intensa, marcada por um acidente grave na juventude, que a fez mergulhar em seu interior e compartilhá-lo com o mundo. Nenhum deles estava tentando imitar ninguém.

Estavam, sim, dando vazão às suas mais profundas crenças moldadas por suas origens, por suas limitações e talentos. Provavelmente conseguindo um nível de contato extra com sua origem, com o que de fato os definia. Parece óbvio, mas não é.

Steve Jobs e Frida Khalo (Crédito: Reprodução)

É muito comum que acreditemos que, em um mundo cada vez mais competitivo, teremos mais chances de nos destacar se estivermos seguindo modelos comprovados de sucesso, copiando a concorrência que foi bem-sucedida ou mesmo negando nossa origem em nome de referências idealizadas, seja para um indivíduo ou uma empresa. Essa reflexão serve para ambos.

Empresas são um grupo de pessoas que colocam suas competências essenciais a serviço de objetivos comuns. Elas serão mais ou menos originais na medida em que consigam ter clareza absoluta de suas origens, da razão pela qual elas existem e prosperaram até aqui.

Nessa hora, o movimento seguinte é buscar a ressignificação dessa origem à luz das novas demandas do mundo. Desse encontro surge o espaço para que ideias verdadeiramente originais possam emergir. 

Em inglês, a palavra “origin” está contida em “originality”. Uma sobreposição que está nos inspirando por conta da celebração dos 35 anos da Tátil. Consultoria de branding e design que nasce da minha origem como estudante de design em 1989, absolutamente entusiasmado com a ideia da natureza como fonte poderosa de inspiração para pensar inovação. Todo o nosso esforço de colocar ideias originais no mundo nesse tempo todo emerge dessa origem e abre espaço para essa reflexão que faço agora.

ideias, quando são realmente originais, viram marcos, impactando para sempre nosso jeito de entender o passado, viver o presente e imaginar o futuro.

O fato é que, sem ideias e soluções verdadeiramente originais, dificilmente conseguiremos construir futuros desejáveis para nós como espécie e para tudo o mais que existe vivo neste planeta incrível.

Por hora, receio que estejamos comprometendo parte da nossa capacidade de ter essas ideias frescas e revolucionárias na medida que temos terceirizado duas das competências essenciais que nos fazem uma espécie fundamentalmente criativa: a intuição e a imaginação.

Como já trouxe em outros artigos, os algoritmos e, mais recentemente, as inteligências artificiais generativas vêm ganhando espaço na maneira como decidimos e criamos. Com isso, as novas gerações, especialmente as nativas digitais, correm o risco de terem essas competências ancestrais atrofiadas, pois o cérebro, obcecado por economia como é, entende que o que não está sendo usado não merece receber energia.

E o pior, logo no momento em que mais precisarão delas, pois estão herdando uma gigantesca batata quente com as inevitáveis questões sociais e climáticas no horizonte, sem falar nas guerras, na crise sistêmica da democracia e do capitalismo. 

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Imaginar o novo será praticamente pré-condição para nossa sobrevivência. O problema é que parece que estamos apostando todas as nossas fichas nas inteligências artificiais como o Santo Graal da inovação com suas respostas instantâneas, entregando o máximo de produtividade e, na área criativa, fazendo em segundos o trabalho que dezenas de pessoas levariam dias.

E aí que mora o perigo. Tudo que as IAs nos oferecem, por enquanto, tem a ver com o que elas enxergam pelo retrovisor a partir da capacidade de metabolizar toda a produção humana até aqui.

A coisa complica ainda mais quando, uma vez que nos últimos 18 meses elas já praticamente devoraram todo o conteúdo disponível, começam agora a se alimentar de sua própria produção, se tornando autorreferentes e, por consequência, ainda mais homogêneas em sua estética e estilos bastante reconhecíveis.

parece que estamos apostando todas as nossas fichas nas inteligências artificiais como o Santo Graal da inovação.

Isso vale para imagens e vídeos, mas também para textos, nos quais argumentações cheias de convicção, mesmo que equivocadas, diante de uma confrontação simplesmente pedem desculpas pelo engano e partem para o próximo desafio.

Corremos o risco de ver nossa produção cultural, intelectual e expressiva virando um grande miojo criativo em sua mediocridade aparentemente saborosa. 

Longe de mim negar a potência das inteligências artificiais e seu papel nos processos de inovação com sua capacidade infinita de análise de grandes volumes de dados ou ainda de simulação e modelagem de cenários complexos.

Minha provocação tem sido a de que não podemos permitir que a nossa inteligência natural, aquela que nos trouxe até aqui e que, inclusive, é a responsável pela invenção das ferramentas de IA, seja esvaziada de sua relevância, sob risco de, sem ela e todo o seu sofisticado sistema à base de sinapses, deixemos de ser quem controla para sermos controlados.


SOBRE O AUTOR

Fred Gelli é co-fundador e CEO da Tátil Design, consultoria de branding, design e inovação que desenha estratégias e experiências de m... saiba mais