O Web Summit, a Bienal de Veneza, Montezuma e a singularidade

A história da humanidade é marcada por dinâmicas de poder em que tecnologias superiores desempenharam um papel decisivo

Créditos: Google DeepMind/ Fons Heijnsbroek/ abstract art/ El S/ Unsplash

Fred Gelli 5 minutos de leitura

Acabo de voltar de uma sequência de experiências que chacoalharam minha cabeça e meu coração. Foram 15 dias entre o Web Summit Lisboa, onde fiz uma palestra no palco Creative, em seguida mais uma semana mergulhando no mundo da arte contemporânea na 60ª edição na Bienal de Arte de Veneza, que este ano contou pela primeira vez com a curadoria de um brasileiro, Adriano Pedrosa. 

Em comum, os dois eventos são os maiores palcos de discussão e apreciação de suas respectivas áreas. No primeiro, mais de 70 mil pessoas do mundo todo compartilham a vanguarda da cena de inovação e tecnologia, em que, naturalmente, a grande protagonista foi a evolução exponencial das inteligência artificiais.

No segundo, mais de 300 artistas do mundo todo se espalham pelas Giardini e Arsenale, áreas específicas da Bienal, mas também por vários outros hot spots da cidade, apresentando pinturas, esculturas, instalações entre outras formas de manifestação das inteligência naturais que a arte (ainda) representa.  

É difícil imaginar contraste maior entre os estímulos, reflexões e sensações nos dois eventos, mas foi exatamente aí que surgiu o insight para escrever este artigo.

Na verdade, me dei conta de que na minha própria palestra eu já estava trazendo a tensão entre esses dois mundos, quando faço a provocação sobre os riscos da atrofia de algumas das nossas competências estruturantes e ancestrais, como a imaginação e a intuição, por conta da delegação de muitas das nossas demandas para as IAs.

Como o cérebro é obcecado por economia, o que ele entende que não estamos mais usando ele redireciona a energia para outro lugar. Como por exemplo a habilidade que tínhamos de guardar números de telefone e que perdemos quando terceirizamos esta demanda para os celulares.

Em Veneza, a imaginação e a intuição pareciam transbordar, quase que como em uma “reserva” na qual essas habilidades mágicas, que nos diferenciam de todas as outras espécies, estivessem protegidas do apetite voraz da tecnologia. Pelo menos foi essa a minha leitura inicial nos dois primeiros dias de Bienal. Só que tinha mais uma conexão muito interessante.

O tema desta edição era “estrangeiros em todo lugar” (Foreigners Everywhere), em que artistas, em sua grande maioria à margem dos circuitos de museus e galerias, apresentaram sua visão de mundo. A contundência do ponto de vista do colonizado, do explorado, do refugiado e expatriado estava por toda parte.

Mural do Movimento dos Artistas Huni Kuin exibido no pavilhão central da Bienal (Crédito: Bienal de Veneza/ Divulgação)

Como, por exemplo, no trabalho de Aydeé Rodríguez López, artista que se define como afro-mexicano, que retrata a realidade nas plantations de algodão, nas quais escravos africanos são explorados por mexicanos e colonizados por espanhóis. 

A partir dessa obra, comecei a me dar conta de que algumas das falas mais contundentes que ouvi no Web Summit tinham uma possível conexão profunda com o que estava exposto na Bienal.

A história da humanidade é marcada por dinâmicas de poder em que tecnologias superiores desempenharam um papel decisivo. Desde o domínio do fogo, passando pela agricultura ou no desenvolvimento de meios de comunicação, quem detinha a tecnologia controlava o destino daqueles que não a possuíam.

diante de tantos trabalhos que retratavam oprimidos em várias culturas me dei conta de como podemos estar repetindo erros históricos.

Essa dinâmica, que resultou na subjugação de povos inteiros, manifestada em muitas das obras expostas na Bienal, podiam nos oferecer um alerta para os desafios do presente, especialmente diante do avanço exponencial das inteligências artificiais gerais.

Em uma das conversas mais impactantes do Web Summit, Max Tegmark, físico e pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), se alinha a muitos outros experts em IA e destaca os riscos incomensuráveis de uma possível inteligência artificial geral (IAG) descontrolada, com competências muito superiores a nossa capacidade cognitiva. 

Me dei conta que ele se referia a essa “entidade” (com um possível QI de 5.000, quando o de Albert Einstein era de 160) como uma força opressora.

Uma potencial colonizadora contemporânea? E nós, primitivos Sapiens, colonizados?

OS ASTECAS E O FASCÍNIO POR CORTÉS

Em 1519, Montezuma e os astecas enfrentaram Hernán Cortés, um conquistador espanhol que, apesar de representar uma ameaça óbvia, foi recebido com reverência. O fascínio pelo "outro", alimentado pela percepção de poder divino e promessas de mudança, facilitou o caminho para a destruição do grande e poderoso império asteca.

Cortés não venceu apenas pela superioridade tecnológica de suas armas ou pela introdução de doenças, mas também por explorar divisões internas e manipular o encantamento cultural que o cercava.

Essa tragédia histórica, como muitas outras, revela como a subestimação de riscos pode ser fatal. Apesar de pressentirem o perigo, os astecas contribuíram, talvez hipnotizados, para a consolidação do poder de Cortés.

O encontro de Cortés e Montezuma, autor desconhecido (Fonte: Wikimedia Commons)

Esse fascínio, difícil de explicar, ecoa em dinâmicas modernas, como a relação com líderes autoritários ou com novas tecnologias que prometem transformar o mundo, como as IAs. 

Em Veneza, diante de tantos trabalhos que retratavam oprimidos em várias culturas, na América Latina, África ou Oriente Médio, me dei conta de como podemos estar repetindo erros históricos, subestimando forças que não controlamos. 

Na enorme maioria das falas no Web Summit, o encantamento com as IAs me fez imaginar os poderosos astecas encantados com aquele guerreiro ruivo que magicamente flutuava em uma nave diante de seus olhos incrédulos. 

Em Veneza, a imaginação e a intuição pareciam transbordar.

A arte sempre antecipou a realidade. A poesia antevê o que a ciência descobrirá. Talvez, mais do que nunca, tenhamos que ampliar nossa conexão com essa forma de expressão do espírito humano. Quem sabe ela possa nos proteger de nós mesmos, essa espécie estranha que somos, que parece oscilar entre o brilho e a barbárie, entre a lucidez revolucionária e a míope estupidez. 

Mas, para isso, precisamos cultivar nossas competências mais profundas e ancestrais, as que nos fazem singulares: nossa intuição, nossa sensibilidade, nossa espiritualidade. Só assim aumentaremos as chances de utilizar toda essa incrível tecnologia que se materializa exponencialmente na frente dos nossos olhos a nosso favor e do nosso planeta azul. E não o contrário.


SOBRE O AUTOR

Fred Gelli é co-fundador e CEO da Tátil Design, consultoria de branding, design e inovação que desenha estratégias e experiências de m... saiba mais