Os tech bros estão saindo do armário

O novo híbrido de nerds tóxicos no Vale do Silício não precisa mais se esconder atrás de xingamentos anônimos e threads de Reddit

Crédito: Fast Company Brasil

Juliana de Faria 7 minutos de leitura

Numa terra distante, num tempo não tão distante assim, existia um reino conhecido como Vale do Silício. Ali, os geeks eram celebrados como visionários do capitalismo norte-americano. Usavam moletons, sandálias com meias e ideias inovadoras como armas mágicas para desafiar o status quo.

Ser inteligente, socialmente desajeitado e, em muitos casos, obcecado por códigos e algoritmos, era o suficiente para forjar a próxima grande revolução tecnológica. As imagens desses nerds eram inofensivas, positivas até, e torcíamos por eles.

Em filmes, eram abusados pelos bullies, mas no final se davam bem, para deleite dos telespectadores. Na vida real, contávamos com seus cérebros para criarem mundos diferentes daqueles que estávamos acostumados. Com mais soluções do que problemas. E certamente com mais espaço para todos os outros personagens em vez do grandão violento que, na fantasia cinemática, os espancavam simplesmente por gostarem de ciência.

Mas, em 2025, esses mesmos nerds começaram a "evoluir". E o resultado é um espetáculo grotesco de testosterona e má conduta empresarial que, na superfície, é cômico. Mas fundamentalmente trágico. Os líderes que habitam a cidade de São Francisco agora treinam MMA, caçam porcos selvagens no Havaí e fazem flexões com pesos presos em seus corpos.

Elon Musk, o enfant terrible da tecnologia, tuita (ou sabe-se lá como ficaria o verbo tuitar agora que Twitter virou X) freneticamente sobre o “retorno da masculinidade” e comemora o triunfo de políticas conservadoras enquanto desdenha de líderes progressistas globais.

Em setembro de 2024, o sul-africano herdeiro de um explorador de minas de esmeraldas escreveu no seu diário particular (ops, ex-Twitter, agora X) que pessoas que não podem se defender fisicamente (mulheres e homens de baixa testosterona) são muito maleáveis ao consenso fabricado por força bruta. Concluindo então que apenas “machos alfa de alta testosterona são capazes de questionar novas informações”.

Mark Zuckerberg, por sua vez, deixou de lado os clássicos moletons com capuz, adotando colares de ouro e camisetas largas, e embarcou em uma verdadeira turnê de rebranding pessoal – ou, melhor dizendo, de relações públicas para a Meta.

Durante uma conversa de três horas no podcast de Joe Rogan, frequentemente associado ao masculinismo tóxico, Zuckerberg argumentou que as corporações precisam de mais “energia masculina”.

Por trás da retórica inflamada e dos músculos definidos, o que vemos é a tentativa de legitimar uma regressão cultural. Para o fundador da Meta, o problema das corporações é que elas se tornaram “neutras demais”. E, ao se afastarem-se da agressividade masculina, supostamente também se afastariam de pulsões inovadoras.

O mesmo homem que começou carreira criando uma plataforma para humilhar mulheres estudantes de Harvard ao avaliar publicamente seus rostos e corpos e que construiu um império digital explorando vulnerabilidades psicológicas do usuário, principalmente, adolescentes, agora quer reintroduzir o “fator macho alfa” à sala de reunião. Como se os tempos de misoginia e excludência na liderança corporativa tivessem ficado distantes demais para serem lembrados.

Mas não nos enganemos: essa “nova” masculinidade que o Vale do Silício tenta emular não tem nada de nova. É o mesmo velho conto, agora coletinho puffer. Essa nostalgia de “energia masculina” é, na verdade, um desejo por controle, status e exclusão de grupos minorizados, disfarçado como progresso.

Esse fenômeno é parte de um conservadorismo que sufoca os direitos das mulheres, limitando suas escolhas e seus espaços de atuação.

Pior ainda, essa performática masculinidade está encolhendo espaços que mal tinham começado a se abrir para mulheres e outras identidades historicamente marginalizadas.

De acordo com um estudo da McKinsey, a representação feminina em cargos de liderança no setor de tecnologia caiu de 33% em seu pico para apenas 28% em 2023. E a tendência é de piora, ao vermos grandes corporações encerrarem suas agendas de ESG como Microsoft, Walmart, McDonald’s e, claro, agora a Meta.

Essa reconfiguração do poder corporativo não é apenas um reflexo da mudança cultural, mas também uma estratégia calculada em tempos de incerteza econômica. As crises frequentemente levam as indústrias a abraçar a impiedade e abandonar valores progressistas em busca de lucro. Vale do Silício agora ecoa Wall Street – um campo de batalha onde ser “agressivo” não é só permitido, mas incentivado – e cria seus próprios “lobos do Python”. 

No entanto, há algo profundamente incoerente nesse suposto “retorno à masculinidade”. Os mesmos homens que pregam virilidade e força como virtudes são, em muitos casos, os que mais exibem fragilidade.

Musk gasta horas do dia em batalhas de teclado no X, demonstrando mais sensibilidade ao crítico ocasional do que um adolescente recebendo seu primeiro dislike.

Zuckerberg, que supostamente valoriza a agressividade, relatou no programa de Joe Rogan que ficava “tristinho” quando servidores da Casa Branca vociferavam contra seus funcionários, exigindo que moderassem conteúdos sobre a pandemia de Covid-19.

A energia masculina do Vale do Silício não se trata de força ou liderança verdadeira; é, na verdade, um grito de socorro. Um eco dos tempos em que esses homens se viam como nerds oprimidos, excluídos pela cultura dominante – primeiro, por uma masculinidade tóxica que esnobava os geeks; depois, por um movimento que buscava equidade em ambientes profundamente desiguais.

Movimento este que nunca foi dominante justamente por ser liderado por grupos minorizados politicamente. Agora, com um pouco de músculo e muito dinheiro, estão convencidos de que podem continuar a escrever as regras com ainda mais força – e, no processo, excluir todos os outros.

POLARIZAÇÃO E RADIZCALIZAÇÃO

Esse retrocesso ideológico não afeta apenas as grandes figuras da tecnologia, mas reverbera nas relações sociais e culturais em um nível mais amplo, especialmente na geração Z. Enquanto as mulheres dessa geração se tornam cada vez mais progressistas, abraçando pautas de igualdade, empoderamento e pluralidade, muitos homens, especialmente os nascidos no mesmo período, têm se afastado dessas transformações.

Em vez de buscar a desconstrução de antigas mentalidades, observamos uma crescente adoção de posturas conservadoras que, além de refletirem a polarização política, afetam diretamente as relações heteroafetivas.

Isso se manifesta de diversas formas, como o movimento das "trad wives''' – mulheres que, em um retorno à ideia de submissão tradicional, buscam a valorização de papéis domésticos e familiares à custa da liberdade feminina.

Crédito: Diamond Dogs/ iStock

Esse fenômeno não é isolado; é parte de um crescente conservadorismo que sufoca os direitos das mulheres, limitando suas escolhas e seus espaços de atuação. Vemos um retroceder em temas como autonomia sexual, liberdade no trabalho e acesso à educação, criando um impasse nas dinâmicas de convivência e comunicação.

Além disso, a decisão de Mark Zuckerberg de remover o fact-checking do Facebook, liberando espaço para desinformação e discursos polarizadores, tem sido um potente impulsionador dessa “catequização masculinizadora”.

Ao permitir a proliferação de conteúdos misóginos e antifeministas, a plataforma alimenta um ciclo de radicalização que promove uma visão distorcida da masculinidade, cada vez mais agressiva e excludente.

Quando teremos uma rede social realmente transformadora, que vá além da busca pelo lucro e pela polarização?

As tensões geradas por esse embate de valores são refletidas nas interações cotidianas, especialmente no ambiente escolar e no crescimento de jovens, onde a violência – física, emocional e digital – se torna mais complexa e difícil de ser resolvida.

Quando, então, teremos uma rede social realmente transformadora, que vá além da busca pelo lucro e pela polarização e que seja pautada por questões sociais? Quando será possível construir um ambiente digital no qual a igualdade seja o princípio norteador, e não a retórica de dominação e exclusão?

Não seria essa a verdadeira revolução que o Vale do Silício poderia, de fato, oferecer ao mundo? Uma rede que amplifique as vozes dos marginalizados, que desafie os problemas estruturais e que, mais importante, reconstrua o tecido social na internet e fora dela de forma ética e justa.

O exemplo do Bumble, criado por Whitney Wolfe Herd após ela ser forçada a deixar o Tinder devido a assédio sexual, ameaças, abusos e controle, demonstra que é possível construir um ambiente mais seguro e igualitário.

A experiência dela, que vivenciou o machismo no ambiente do Tinder, a motivou a criar uma plataforma onde as mulheres podem dar o primeiro passo, criando um espaço onde a segurança e o respeito são prioridades. A resposta a essa pergunta, sem dúvida, está nas mãos de todos nós.

Precisamos, mais do que nunca, de um trabalho pró-equidade, democracia e segurança ainda mais incisivo, sem receio de tocar nas feridas. Já não é tempo de pleitear espaços com cortesia. Que sejamos mais claras, mais fortes, e que não temamos incomodar os poderosos, pois o futuro que buscamos não cabe no mundo que eles tentam nos forçar a engolir.


SOBRE A AUTORA

Juliana de Faria é jornalista, escritora e pós graduada em neurociência e comportamento. Está à frente do Estúdio Jules, consultoria c... saiba mais