Pequenas invisibilizadas – o desafio oculto do trabalho doméstico infantil

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Pâmela Carvalho 5 minutos de leitura

O trabalho doméstico no Brasil está intrinsecamente ligado à história da escravidão e às desigualdades sociais que persistem até hoje. As raízes dessa atividade remontam ao período colonial, quando a mão de obra escravizada era utilizada para realizar tarefas domésticas nas casas das famílias das classes dominantes.

Com a abolição – nos termos da lei – da escravidão em 1888, a demanda por trabalhadores domésticos continuou, mas agora recaía sobre mulheres negras e pobres, que, em sua maioria, não tinham outras oportunidades de trabalho.

Após a assinatura da Lei Áurea, o Estado brasileiro não implementou medidas eficazes para integrar os ex-escravizados à sociedade que se formava e forjava ares de liberdade e multiplicidade cultural. O acesso à terra, educação, saúde e emprego formal foi negado à população negra, aprofundando um abismo social e econômico.

Assim, um sem fim de homens e mulheres negros se vêem em condições de sub humanização e acaba por migrar da condição de escravizados para ocupantes de espaços de trabalho que eram considerados menos dignos, por outras classes sociais e perfis raciais.

Cabe dizer que essa leitura sobre os tipos de trabalho digno e não digno é marcada por estereótipos e por uma condição colonial que criou um desejo coletivo de ser servido por outrem.

No livro “Um Pé na Cozinha”, a socióloga Taís de Sant’Anna Machado aponta que:

“Tanto no século 19 como no 20, a conservação de mãos brancas finas, sem cicatrizes ou marcas de queimaduras como um símbolo da almejada feminilidade, dependia da existência de mãos negras femininas cuja pele foi engrossada pelo trabalho, cheias de marcas de um trabalho exaustivo e violento.”

Estas mãos negras, engrossadas e marcadas pelo trabalho violento, escravizado ou mal remunerado, muitas vezes eram também mãos jovens. A lógica da servidão, internalizada em nossa sociedade, contribui para a naturalização da exploração de crianças e adolescentes em ambientes domésticos.

O trabalho doméstico, marcado pela desvalorização e invisibilidade, encontra no trabalho infantil uma expressão perversa

A visão distorcida de que tais atividades constituem uma “ajuda” ou “aprendizado”, mascarando a realidade da exploração histórica, perpetua a violação de direitos e impede o desenvolvimento pleno de suas capacidades.

Em uma conversa com minha avó, ela me contou que, com 11 anos, trabalhava em “casa de família” e tomava conta de uma criança. Como se ela também não fosse uma criança!

Em minhas andanças e diálogos com senhoras negras pelo Brasil, essa história se repetia. O CEP mudava. A idade variava. Às vezes sete anos. Às vezes 10 anos. Às vezes 13... O que não mudava era a adultização, a exploração e a interrupção da infância de meninas negras.

Meninas essas que, posteriormente, se tornam mulheres que enfrentam extremas dificuldades de ascender financeiramente ou estruturar carreiras desvinculadas do trabalho doméstico.

O trabalho doméstico, historicamente marcado pela desvalorização e invisibilidade, encontra no trabalho infantil uma expressão perversa. A sobreposição de funções de cuidado com a casa e com a família, muitas vezes sem a devida remuneração ou reconhecimento social, coloca crianças e adolescentes em situação de extrema vulnerabilidade.

A naturalização dessa sobrecarga de trabalho, especialmente para meninas e mulheres, reforça estereótipos de gênero e perpetua desigualdades de oportunidades.

A invisibilidade do trabalho infantil doméstico, realizado majoritariamente por meninas e adolescentes, facilita sua perpetuação. Escondido nas entrelinhas da vida privada, este tipo de exploração se torna mais difícil de ser detectado e combatido.

As longas jornadas de trabalho, a ausência de remuneração digna, a privação de direitos básicos, como educação e lazer, e a constante exposição à violência física e psicológica configuram uma realidade  desumana.

Dados do levantamento “O Trabalho Infantil Doméstico no Brasil – Análises Estatísticas”, organizado em 2022 pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), traz dados alarmantes. Em 2019, a quantidade de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos em trabalho doméstico somava 83.624.

Crédito:FNPETI

O trabalho infantil doméstico se concentra nas áreas urbanas das cidades. Em 2019, 85% das trabalhadoras infantis domésticas viviam em áreas urbanas. Na região Nordeste, no entanto, 30% das trabalhadoras viviam em áreas rurais.

A pesquisa também reforça que o trabalho doméstico infantil afeta majoritariamente as meninas. Em 2016, 90% das crianças e adolescentes envolvidos nesse tipo de trabalho eram do sexo feminino – um número que, em 2019, ainda representava 85%.

Quando analisamos a raça das vítimas, vemos que entre 2016 e 2019, a maioria dos envolvidos nesse tipo de exploração eram crianças e adolescentes negras (entre 70% e 75% do total).

O percentual de crianças e adolescentes negras no trabalho infantil doméstico varia de acordo com a distribuição populacional por região. No Sul, em 2019, 50,7% eram negras, enquanto no Norte, esse número chegava a 89,3%.

A invisibilidade do trabalho infantil doméstico, realizado majoritariamente por meninas e adolescentes, facilita sua perpetuação.

É importante destacar que a predominância da população negra no trabalho infantil doméstico está diretamente relacionada à pobreza, que também afeta essa população de forma desproporcional.

E porque discutir um assunto tão denso e difícil? No Brasil, giram mercados e carreiras que podem ser facilmente acompanhados pela população geral. A inflação, as carreiras de grandes empresários, o preço dos itens nos supermercados… Mas, por trás disso, existem outros mercados de “trabalho”, de troca e de exploração que são ocultos debaixo de um véu de moralismo e manutenção de desigualdade de classes.

Para discutir planos de carreira para mulheres, temos de pensar nas milhares de meninas que não podem ir à escola porque estão em trabalho doméstico. Para pensar as capas de revista que estampam jovens empresários bem sucedidos, temos de discutir se nessas famílias não há uma manutenção geracional da exploração do trabalho de mulheres e meninas negras.

Para pensar de forma séria o capital e a economia brasileira, temos de enfiar o dedo nessa ferida e lançar luz em nossas “pequenas”, meninas que, ao longo da história deste país, foram escondidas atrás de vassouras, panelas e opressões.


SOBRE A AUTORA

Pamela Carvalho é gestora de negócios de impacto social e coordenadora na Redes da Maré. Pâmela Carvalho é historiadora, educadora, co... saiba mais