Perigo de gatilho: comfortably numb

Cada alerta de gatilho, cada opinião confirmada, cada diferente que rejeitamos é um tijolo que reforça a muralha que nos enclausura

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Andrés Bruzzone 3 minutos de leitura

Ocorreu em junho passado, na Universidade de Dublin. Uma jovem filósofa turca falava sobre violência extrema contra mulheres e a dificuldade de seus testemunhos serem ouvidos. Conferência emotiva e inteligente que provocou reações inesperadas: enquanto uma professora deixou a sala, outras questionaram (duramente) a falta de avisos de gatilho.

Algo semelhante aconteceu comigo um ano antes, em um congresso de filosofia em Paris, quando fui impedido de seguir com minha palestra dedicada à dificuldade de falar sobre suicídio.

Trigger alerts, ou avisos de gatilho, são advertências sobre conteúdos que podem desencadear reações emocionais intensas ao evocar lembranças dolorosas de experiências traumáticas. Surgiram na década de 1970 para proteger vítimas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e, especialmente nos EUA, tornaram-se exigência em produções culturais e instituições educacionais. Já estudos recentes sugerem que esses avisos podem ser ineficazes ou até mesmo piorar os sintomas.

Aqui, nos interessam como sinais da nossa dificuldade crescente para lidar com o que incomoda ou fere. Cada vez mais nos protegemos de aspectos da vida que preferimos negar. O resultado é habitarmos um mundo menos diverso, mais homogêneo. Menos democrático e mais adoecido.

Já em 2001, Cass Sunstein, no livro "Republic.com", alertava sobre o risco de enfraquecimento da democracia se pudéssemos filtrar a informação, apenas ver o que escolhemos. Se deixássemos de estar expostos a informações incômodas, perturbadoras ou simplesmente não favoritadas.

Ainda não existiam os algoritmos das redes sociais que criam bolhas informativas e nos afastam de opiniões divergentes. A polarização atual prova o quanto ele estava certo.

Antes da internet, já existiam as bolhas sociais. Veja nossa vida cotidiana. Saímos da sala direto para o carro; protegidos por vidros escuros, talvez blindados, circulamos até o prédio de escritórios ou o shopping. Ecossistemas fechados, micromundos de ingresso controlado.

Muros visíveis e invisíveis nos afastam de perigos, reais ou não, e também dos cheiros e sons, das imagens de uma realidade mais agressiva que a do clube ou do condomínio. A pandemia de Covid-19 exacerbou esse isolamento.

E se a democracia sofre, a saúde também. Partes de nós que teriam potencial para se desenvolver e se expressar de forma saudável, acabam reprimidas e retornam como doença: depressão, ansiedade, esgotamento e até pensamentos suicidas. Consultórios de psicólogos e psiquiatras lotam e o consumo de psicofármacos atinge níveis alarmantes.

Bolhas na internet, isolamento social e ambientes informativos personalizados reforçam o viés de confirmação:

Cada vez mais nos protegemos de aspectos da vida que preferimos negar.

buscamos e recebemos informações que fortaleçam nossas crenças preexis- tentes, ignorando dados e opiniões contrárias. Renunciando ao exercício de ouvir o outro, reduzimos a capacidade de exercer o pensamento crítico. 

Paradoxalmente, somos convocados a sair da zona de conforto, a buscar diversidade e pensar fora da caixa. E é correto. A variedade de experiências e perspectivas enriquece nossa compreensão do mundo e nos prepara melhor para enfrentar o imprevisível.

Não podemos ser criativos, não existe ser inovador sem nos expormos ao acaso, ao inesperado, ao que perturba, sem abertura ao novo, ao desconhecido.

    Em 1979, Pink Floyd lançou o álbum "The Wall", com a música "Comfortably Numb" falando do conforto entorpecido do isolamento. A arte sendo premonitória e precisa. Cada alerta de gatilho, cada opinião confirmada, cada diferente que rejeitamos é um tijolo que reforça a muralha que nos enclausura.

    Tomar consciência de que a parede existe é o primeiro passo para começar a atravessá-la.


    SOBRE O AUTOR

    Andrés Bruzzone é fundador e CEO da Pyxys, mediatech brasileira que se propõe a reinventar o negócio da mídia com novos modelos de pub... saiba mais