Propósito sem legado é egotrip
Em 2018, a fintech Doconomy lançou Do Black, o primeiro cartão de crédito com limite de gastos – baseado, exclusivamente, na pegada de carbono dos seus clientes.
A cada compra, uma inteligência artificial estimava o quanto de CO2 havia sido emitido para a produção e logística do produto adquirido. Se você comprasse uma camiseta, seriam descontados cerca de 6 quilos de carbono do seu fundo mensal. Se comprasse uma passagem aérea, sairiam pelo menos 60 quilos. E assim por diante.
Caso você fosse comedido nas compras (por consequência, nas emissões), nada aconteceria. Agora, se você extrapolasse o seu limite de carbono do mês, o seu cartão de crédito ficaria automaticamente bloqueado, como forma de evitar novos danos ao meio ambiente – servindo, também, como convite à reflexão.
Esse case inovador impressiona por inúmeros aspectos. Do meu viés (que mistura um pouco da visão de empreendedor e um pouco da visão de futurista), destaco:
• Do Black, definitivamente, não é um business-as-usual. Não é morno. É difícil ficar incólume à sua soma de pioneirismo e impacto.
• Do Black é um claro entregável de futuro: ele não é uma promessa (propósito). É uma promessa concretizada (legado).
• Sua abordagem é tão original que poderia, facilmente, pavimentar um novo mercado: os cartões de crédito com limite de pegada de carbono.
• Se, porventura, a iniciativa da Doconomy não viesse a durar para sempre (como não durou), ainda assim deixaria uma sementinha muito maior que a grandessíssima maioria das empresas do setor financeiro.
• Talvez você não concorde comigo, mas entendo que, às vezes, é possível ver um lado artístico emergindo do empreendedorismo. Assim como um escultor usa a pedra como matéria-prima, como um pintor usa a tela como base, as pessoas empreendedoras, em determinadas situações, conseguem usar do invisível do mercado para dar vida a ideias indiscutivelmente inovadoras. Do Black tem isso na sua essência.
Pois feito este longo preâmbulo, vamos retomar a nossa Teoria de Futuros: proposta que ganha vida a partir das colunas da Fast Company Brasil e que traz um possível caminho para transformar businesses-as-usual em businesses-as-unusual. Os passos são:
0. Sistema Pró Ruptura
1. Impermanência Propositiva
2. Repertório Multidimensional Para Futuros
3. Perspectiva Futures-Back
4. Beta do Business-as-Unusual
5. Modelagem do Business-as-Unusual
6. Diversificação Pós-Digital
7. Intraempreendedorismo Orgânico
8. Venture Builder de Objetos do Amanhã
9. Pacto Anti-Bullshitagem
10. Cultura Antecipatória
11. Reboot Button
TUDO TEM UM FIM
Hoje, quero me aprofundar minimamente na ideia de Impermanência Propositiva: uma espécie de revitalização do termo propósito. Apesar da sua notável importância, o conceito sofreu um grande esvaziamento e, não raro, tem apresentado abordagens tóxicas e caricatas.
A Impermanência Propositiva vem com a intenção de resgatar a sua essência e nos relembrar do óbvio: as empresas são um meio, não um fim. Elas devem servir a nós, e não nós a elas. Elas devem existir pelo tempo que fizer sentido e não, necessariamente, para sempre.
Explico.
O ciclo natural de tudo o que nos cerca é sempre o mesmo. Primeiro, as coisas nascem, crescem e amadurecem, atingindo um equilíbrio homeostático. Num segundo momento, elas se reproduzem, gerando herdeiros que carregam parte do seu código genético. Até que, no terceiro ato, entram numa leve curva descendente, cada vez mais acentuada, sendo a antessala do último suspiro. O seu fim.
Não conheço nada no universo que dure para sempre. Até onde sei, o próprio universo tem data para acabar. Seja porque seremos engolidos pelo excesso de matéria escura (Teoria do Big Crunch), seja porque teremos um big bang reverso (Teoria do Big Rip), seja pelo apagar das estrelas que culminará num enorme congelamento (Teoria do Big Freeze).
Portanto, guarde aí a primeira ressignificação que vem com a Impermanência Propositiva: tudo tem um fim. Por que as nossas empresas não teriam? Por que queremos que elas durem para sempre?
Mas (já entrando na segunda ressignificação) essa ideia de fim muda radicalmente no momento que lembramos de Antoine Lavoisier: "na natureza, nada se cria, nada se perde: tudo se transforma".
A mesma vida que vai para baixo da terra vira nutriente para uma nova vida que floresce. Até alguém bem cético perante a reencarnação (como eu) tem motivos suficientes para acreditar que o falecer nunca é o último ato. É só parte de um processo muito maior.
A mudança de percepção é justamente essa: quando você isola os organismos e os analisa individualmente, cada um tem início, meio e fim. Agora, quando você os vê como elementos de um grande conjunto, eles são, apenas, um único sistema. São o que são.
TUDO TEM SEU TEMPO
Essa é a segunda ressignificação que vem com a Impermanência Propositiva: na natureza, todo organismo que deixa algum tipo de legado transcende o seu próprio ciclo de existência. Por que as empresas não podem pensar do mesmo jeito?
Aprofundando a reflexão: e se a nossa missão, como lideranças, não fosse nos preocupar com a perpetuação das nossas empresas? Em vez disso, fosse pensar em como deixar um legado relevante, que nos tornasse, de certa forma, imortais?
Me parece que essa imortalidade (no sentido figurado) certamente nos deixaria mais à vontade para aceitar com naturalidade uma possível finitude. Seria um ganho duplo: pelo impacto direto do próprio legado e pela não necessidade de esticarmos o ciclo de vida de uma organização que não tem mais nada de relevante a oferecer.
Mas (já entrando na terceira ressignificação): é importante separarmos bem legado de propósito. E já que o papo é reto, lá vai: eu não entendo o propósito como elemento central do processo de inovação. Já acreditei, mas não acredito mais.
as empresas são um meio, não um fim. Elas devem existir pelo tempo que fizer sentido e não, necessariamente, para sempre.
Porque o propósito só se revela verdadeiro quando aplicado. Só então podemos avaliá-lo. Só então podemos entender se o discurso era genuíno ou não. Até lá, ele será apenas intenção. E, como diz a sabedoria popular, disso o inferno está cheio.
Só que, quando aplicado, o propósito muda de nome. Passa a se chamar legado. O que nos coloca num paradoxo. Se era uma intenção, e já sublimou essa etapa de intenção (chegando à concretização), por que seguimos obcecados pela intenção?
Esse apego só faz sentido se não há coerência entre um e outro. O que dá uma boa pista do porquê o mundo corporativo se deslumbrou tanto com propósito. É um atalho para o paraíso sem precisar exercitar virtudes na vida terrena.
Inclusive, acho que existe um jeito mais contemporâneo de pensar propósito. Dou os créditos à brilhante Roberta Hentschke: "não precisamos de empresas que ficam anunciando seus propósitos aos quatro ventos, mas de organizações que se comprometam verdadeiramente com promessas de futuro".
Adicionando meus dois centavos: precisamos de empresas com entregáveis de futuros. Materializações, respostas tangíveis, mensuráveis e inspiradoras, que apresentem ao mundo novas propostas de como podemos viver melhor, consumir melhor, aprender melhor.
Se você quer revolucionar a educação, não se preocupe com a frase da bio. Ela não diz nada. Coloque energia em construir uma escola que traga uma proposta verdadeiramente nova. Apresente isso ao mundo. Se você se ocupar apenas com o legado, o propósito virá a reboque.
Propósito sem legado é apenas egotrip.
PIONEIROS E SEGUIDORES
O que nos leva à quarta e última ressignificação: a gente precisa aprender a observar melhor os nossos experimentos de negócios. Projetos com insucesso econômico (mas que pavimentam o sucesso econômico alheio) também são sucesso. Dependendo do ponto de vista: sucesso duplicado, triplicado, quadruplicado na comparação com seus sucessores.
Dizendo de outra forma: se estamos falando de businesses-as-unusual, muitas vezes a métrica de sucesso não será "como 'performei' bem em uma infraestrutura que já existe", mas sim "o quanto ajudei a construir uma nova infraestrutura que permite que novos participantes levem o mundo para um lugar melhor".
businesses-as-unusual são empresas propositivas, não reativas. Elas não querem seguir a tendência. Querem ser a tendência.
Não há como negar que existem os que pavimentam a inovação e os que desfrutam da inovação já pavimentada. Se você é um pioneiro, talvez crie um mercado que você mesmo não será capaz de usufruir economicamente. Pelo simples fato de ter gasto tanta energia para criá-lo que não será viável empregar essa mesma energia num segundo sprint (agora, para sorvê-lo).
Entendo quem se satisfaz com o simples fato de jogar bem o jogo que já se joga. Mas, pelo menos para mim, essa é a Série B da inovação. A primeira divisão está naqueles que criam mercados – mesmo que, pelos motivos que eu já expliquei, não consigam performar tão bem.
Isso é legado. E isso nos ajuda a entender a natureza da Impermanência Propositiva:
1. Empresas que têm clareza sobre os seus entregáveis de futuros: iniciativas empreendedoras que somam pioneirismo e impacto.
2. Essa originalidade costuma ter potencial de pavimentar novos mercados. Muitas vezes, esse espaço será melhor explorado economicamente pelos novos entrantes do que pela empresa criadora. E tudo bem, já que essa não é sua principal métrica de sucesso.
3. Uma vez realizados os entregáveis, a empresa não se preocupa em estender o seu ciclo além do necessário. A impermanência é vista como algo natural.
4. Existe um aspecto artístico por trás da criação desses businesses-as-unusual. São empresas propositivas, não reativas. Elas não querem seguir a tendência. Querem ser a tendência.
5. Talvez o que resuma tudo: elas não se preocupam em ser empresas grandes. Se preocupam em ser grandes empresas.
Evidente que a Impermanência Propositiva provoca questionamentos imediatos. Um deles é sobre a sustentabilidade financeira da organização. Se pavimentar o mercado para os demais é a grande métrica de sucesso, como pagamos os boletos?
Pois aí eu preciso resgatar um pouco do que foi dito na coluna anterior, mas também lembrar que a lista da Teoria de Futuros é longa. Os itens cinco, sete e oito são, especificamente, boas respostas para essa questão. Aguarde que vem mais por aí.
Legado é maior que longevidade. Os Beatles, que duraram apenas 10 anos, são prova disso. Por sinal, há um pensamento atribuído a John Lennon que sintetiza muito do que dissemos aqui. "tenho o maior medo desse negócio de ser normal". Eu, Tiago, também.
Ser um business-as-unusual é muito mais que uma decisão de negócios. É uma filosofia de vida. Se for essa a sua escolha, pode ter certeza: a Impermanência Propositiva estará sempre de prontidão para se colocar como uma grande aliada.