SXSW, o metaverso e a gamificação do marketing
Escrevo essa coluna no avião voltando do SXSW – evento que, depois de dois anos de hiato, voltou a reunir presencialmente pessoas do mundo todo para verem antes de todo mundo quais são as últimas tendências. E esse ano eu reparei que, em meio a uma semana que é sempre dedicada à diversidade (em todos os sentidos) – e com uma invariável variedade de assuntos – pela primeira vez, desde que eu comecei a ir para lá, uma palavra roubou a cena como nunca havia acontecido antes e se tornou praticamente onipresente em todas as palestras, debates e painéis: Metaverso.
Afinal, não haveria cidade melhor para se falar sobre isso, pois poucos lugares no mundo real se parecem tanto com o Metaverso quanto Austin – uma bolha revolucionária e inovadora, isolada no conservador Estado do Texas, onde você pode ser o que quiser, do jeito que quiser e com quem quiser. E como é um evento que acontece espalhado por todos os cantos, a todo instante ouvia-se pessoas falando (muitas delas em português) sobre Cryptocurrency, Blockchain, NFT e afins. E na programação oficial, desde o Mark Zuckerberg (que, por motivo de segurança, fez sua palestra online) até a atual Prêmio Nobel da Paz Maria Ressa (que, por segurança sem motivo, foi impedida de viajar pelo governo filipino e também precisou falar remotamente), todo mundo teve que dar sua opinião sobre os pontos positivos e negativos de inevitavelmente passarmos a ter nossas metavidas.
Mas, como ainda é um assunto bastante recente, a real é que muito se falou sobre esse novo mundo virtual, mas pouco se mostrou. Eu me cadastrei em todas as ativações imersivas que encontrei pela frente, desde brincar de Jedi com um sabre de luz virtual no espaço do Meta até flutuar pelas ruas de uma Londres utópica vendo as intervenções urbanas do genial Banksy (o “artista desconhecido mais conhecido do mundo”) na sua maravilhosa exposição no centro da cidade, e ficou claro que, como já disse na minha última coluna, ainda estamos vivendo a fase do “Betaverso”: apenas um embrião do que esse novo mundo imersivo será daqui a alguns anos.
E quando eu vi que não ia ver muitos exemplos prontos, resolvi então escutar quem já está trabalhando com isso há mais tempo – e alguns conceitos que ouvi nos painéis (que geralmente são menos atrativos do que os conteúdos audiovisuais das palestras) me fizeram enxergar muito além do que qualquer óculos de realidade virtual. Na “Blockchain Creative Labs”, por exemplo, o Brian Trunzo (Metaverse Lead na Polygon Studios) disse uma das falas que mais me impactou esse ano: “No mundo real, quanto mais você usa um produto físico, mais ele vai ficando velho. No metaverso, quanto mais um produto digital é usado, mais novo ele pode ficar.”
No mundo real, quanto mais você usa um produto físico, mais ele vai ficando velho. No metaverso, quanto mais um produto digital é usado, mais novo ele pode ficar.
Ou seja, substituiremos a desvalorização de passivos físicos obsoletos pela valorização de ativos digitais renováveis. Em outras palavras, no Metaverso um produto usado pode valer mais do que um novo. Como assim? Explico: imagine um tênis. No mundo real, conforme você vai usando, ele vai ficando sujo, a sola solta, o cadarço esgarça… e, com o passar do tempo, o valor dele vai diminuindo pouco a pouco. Já no mundo imersivo, é possível “gamificar” a versão digital desse mesmo tênis para que assim, quanto mais você usar, mais features novos dele você possa desbloquear. Andou mil quilômetros: ele começa a piscar. Andou 5 mil: pula mais alto. Andou 10 mil: passa a voar. E assim por diante.
Dessa forma, os consumidores serão recompensados proporcionalmente pelo tempo de uso dos produtos ou serviços, elevando o conceito de fidelização para um outro patamar – basta imaginar essa nova dinâmica sendo aplicada a tudo aquilo que será possível comprar no Metaverso: carros, casas, roupas, acessórios etc. É o que eu apelidei de CRMeta: uma “gamificação do marketing” em todos os pontos de contato com os consumidores. E as marcas vão ter que, literalmente, aprender a jogar esse novo jogo.
E se adicionarmos por cima disso tudo a nova lógica do NFT, o Non Fungible Token – ou, em bom português, um selo de autenticidade digital impossível de ser fraudado –, aí a brincadeira fica ainda mais interessante: os consumidores não só melhorarão seus produtos com o uso recorrente deles como também poderão ser remunerados por colecionarem as marcas. Ou como disse o artista digital Bobby Hundreds em um dos ótimos debates na “Creator House”: “Quando eu era adolescente, minha mãe criticava minhas roupas dizendo que eu parecia um outdoor ambulante mostrando de graça os logos de tantas marcas. Hoje eu vejo que ela tinha total razão: no metaverso, as pessoas vão ser remuneradas pelas empresas simplesmente por exibirem seus produtos.”
Quando eu era adolescente, minha mãe criticava minhas roupas dizendo que eu parecia um outdoor ambulante mostrando de graça os logos de tantas marcas. Hoje eu vejo que ela tinha total razão: no metaverso, as pessoas vão ser remuneradas pelas empresas simplesmente por exibirem seus produtos.
Isso só é possível porque produtos digitais de uma mesma categoria não precisam necessariamente ser uma cópia exata um do outro – já que não se aplica no Metaverso o conceito da produção em massa, estabelecido durante a Revolução Industrial, para baratear o custo unitário das peças. Fazendo uma analogia, será mais ou menos como o que acontece hoje com as camisas de times de futebol: por mais que a base seja a mesma para todas, existe por cima delas as camadas de personalização do número, do nome e, para as raras camisas oficiais de jogo, o registro da data exata e dos times que disputaram aquela determinada partida. Portanto, quanto mais única e exclusiva ela é, mais vale entre os colecionadores – e no Metaverso, será tudo assim: em vez de fabricarem mil camisas idênticas, as marcas de roupa farão mil camisas diferentes uma da outra e venderão todas como artigos únicos, exclusivos e autenticados via NFT. É por isso que muitos estudos dizem que, em breve, as pessoas vão ter mais roupas digitais no mundo digital do que no real – onde o que você tem no seu armário é estático, envelhece, suja e o que é pior para os fashionistas: é idêntico ao que outras pessoas têm.
Sem falar que o NFT será também, de certa forma, a evolução do crowdfunding – porque os apoiadores, além de simplesmente darem dinheiro adiantado para serem os primeiros a receber produtos e benefícios exclusivos logo após o lançamento, agora serão “donos” de uma parte da obra que eles financiaram. Como assim? Explico: imagine uma música. O autor, pra arrecadar fundos e poder gravá-la, vai criar NFTs dela pra que as pessoas possam comprá-la antecipadamente. Depois, quando ela estiver pronta e for lançada em algum player, todo mundo que comprou um pedaço dela vai ganhar uma pequena porcentagem do valor arrecadado com o streaming – se tornando assim, mais do que fãs, “sócios” do artista naquele projeto. Guardadas as devidas proporções, é a mesma lógica da bolsa de valores aplicada ao mundo das artes, em que as pessoas poderão comprar “ações” dos seus trabalhos favoritos – gerando um novo modelo descentralizado para o financiamento de artistas. E assim, quanto mais sucesso fizerem, mais dinheiro vão ganhar junto com o seu público fiel.
Mas como acontece com toda tecnologia nova que surge, haverá sempre o uso correto dela (para o bem) e o uso incorreto (para o mal). Foi assim com todas as invenções da humanidade até hoje (o fogo, a roda, a eletricidade, a internet…) e com o Metaverso não será diferente – e até esse mundo virtual se tornar uma realidade, vamos ver muitos acertos e, inevitavelmente, muitos erros.
Afinal, errar é humano – mesmo que esse humano seja um avatar.