Um brinde à ação
A mesa em que nos sentamos hoje está em Minas Gerais – mais especificamente, no Brumal, uma vila lindinha, que fica na região da Serra do Caraça. Lugar onde minha avó passava boa parte do seu tempo antes de morrer. Esse foi o cenário das muitas histórias que escutei neste mês, enquanto eu e minha família festejamos juntos o aniversário de um ano da sua morte.
Vamos, ergamos nossos copos: quero fazer um brinde à vida de Dona Lulu – e à ação que, mais uma vez, se provou um belo caminho.
Os seres humanos são críticos por natureza. Peça a um de nós que critique algo ou debata sobre algum assunto e podemos passar 10 anos o fazendo – talvez a gente se canse antes, mas temos capacidade para tal feito. Quando você tem um problema e pede a um grupo de pessoas que o encare e debata sobre ele, quase que automaticamente começarão a listar uma infinidade de aspectos relacionados: fatos, impressões, dúvidas, dados, possíveis derivações, ideias de solução, ideias de solução que parecem se encaixar, ideias de solução que quase não se encaixam, ideias de solução que não se encaixam de jeito nenhum, ideias de solução que não se encaixam de jeito nenhum mas dão origem a um novo jeito de encarar o problema, ideias de solução que não se encaixam de jeito nenhum e revelam um obstáculo, que revelam um novo dado, que revelam uma preocupação, que revelam um motivo para ter medo, ou dois, ou mais, que revelam que já nem sabemos mais de onde partimos.
O cordão infinito de possibilidades, aos poucos, nos afasta do problema em si. Nos leva ao que aqui, neste brinde, chamarei de Esquecimento.
Agora, se esse mesmo grupo de humanos for desafiado a construir uma solução para o problema, eles construirão – não sem antes criarem várias desculpas para continuar debatendo, devo avisar.
No entanto, uma vez convencidos a fazê-lo, eles próprios se surpreenderão com o quão longe podem ir, tão logo consigam deixar de lado o tal “cordão infinito de possibilidades inesgotáveis” que qualquer interação social – e de nós com o mundo – gera. É como se uma parte diferente do cérebro fosse acionada, uma parte mais autônoma, mais capaz de seguir adiante. Uma parte que aqui, neste brinde, chamarei de A parte que se lembra.
No trabalho – ou na vida – é o “fazer” que nos leva sempre mais perto de quem realmente somos
O neurocientista e escritor norte-americano David Eagleman é autor de um livro de ficção sobre o Além, onde a morte terrena é vista apenas como um primeiro estágio da morte propriamente dita. Neste lugar, o Além, as pessoas só vão embora mesmo quando seu nome é pronunciado na Terra pela última vez (este livro se chama “A Soma de Tudo” e o conheci por uma coluna sobre luto escrita pelo Contardo Calligaris, cuja morte aconteceu no dia seguinte à da minha avó, há um ano). Ou seja: o morto só morre mesmo diante do Esquecimento.
E uma das grandes ferramentas que temos para não nos esquecermos de alguém é fazer aquilo que a pessoa fazia. Eternizar a memória por meio da ação.
Minhas tias, nesse fim de semana, reunidas no Brumal, repetiram o enxoval de doces e quitandas que Dona Lulu seguia fazendo até pouquíssimo tempo antes de ir embora. E em cada biscoito, em cada bolo, em cada pote havia o nome de minha avó, sua memória, sua existência. Ela segue viva, no Além de A Soma de Tudo.
Foram as quitandas feitas pelas minhas tias que coloquei na lancheira dos meus filhos na segunda-feira antes da escola. Em cada lancheira, um bilhete com o nome da minha avó e com relatos sobre minhas tias reunidas, fazendo aquelas quitandas. Uma história de hoje, e não de tempos passados. O Esquecimento ficando cada vez mais distante. Porque enquanto cada tia, cada neto e, quem sabe agora, cada bisneto, estiver vivo, fazendo o que ela fazia, seguiremos falando seu nome.
Contar as histórias de tempos passados não tem o mesmo peso doce de um biscoito diferente na lancheira da escola, no meu lanche de hoje. Não tem o mesmo peso de assistir à mãe enrolando tranças de farinha aos domingos. É a ação que nos permite manter a memória cada vez mais viva, no lugar de cada vez mais distante.
É a ação que desperta A parte que se lembra.
Por isso, levantemos nossos copos neste brinde à ação. No trabalho – ou na vida – é o “fazer” que nos leva sempre mais perto de quem realmente somos.
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