Um brinde ao metaverso, ao garfo e à humanidade
A mesa em que nos sentamos hoje está em Bagé, uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul, que faz fronteira com o Uruguai. Uma cidade em que, no século passado, um grupo de moradores intelectuais e influentes precisaram escrever um manifesto. Uma nova tecnologia havia sido inaugurada no município, o rádio, e esses moradores se preocupavam com o fato de que ela poderia monopolizar a atenção das pessoas, silenciando o assobio, “essa manifestação tão genuína do nosso povo”.
Os moradores de Bagé temiam que o avanço tecnológico tirasse deles uma parte importante da sua humanidade. Vamos, ergamos nossos copos, quero brindar a este medo, tão disseminado entre nós: o de que o avanço tecnológico nos tire algo muito humano.
Esse medo me parece estar latente em uma frase do Scott Galloway, palestrante que abriu o SXSW deste ano. “Há muito potencial no metaverso como negócio e um risco de nos distanciarmos do mais recompensador da experiência humana: as relações interpessoais.”
Eu me reconheço nesta frase, também. Foi exatamente isso que senti da primeira vez em que ouvi falar de metaverso. Senti frio, incômodo, e um certo… distanciamento da natureza, seria um bom jeito de frasear. E, então, me lembrei dos moradores de Bagé.
A previsão fatalista que motivou aquele manifesto não me parece ter sido realizada. Nos últimos 100 anos, sinto que o rádio nos levou mais perto de nossa humanidade – e não mais longe. É claro que o rádio nos transformou e, assim, transformou nossas relações. É bem provável, por exemplo, que, num mundo
quero brindar a este medo, tão disseminado entre nós: o de que o avanço tecnológico nos tire algo muito humano.
sem rádio > televisão > internet > Spotify uma pessoa como eu (quando tento assobiar não emito exatamente um som, mas um pif) tivesse aprendido a entoar notas diversas só usando lábios e sopro. Sem outro recurso para som-durante-deslocamentos, assobios parecem mesmo uma boa opção. Mas me parece difícil defender a ideia de que o rádio tirou algo de nós ou piorou nossas relações interpessoais.
Há algo de irônico nesse nosso medo. Afinal, as tecnologias (todas elas: do lápis aos NFTs) são criações extremamente humanas. Somos um bicho capaz de imaginar, combinar, extrair, armazenar, implementar e construir coisas muito complexas. Ainda assim, a cada vez que damos um passo em direção a essa imaginação, uma parte de nós estremece. E não é só quando falamos de novidades digitais.
Em 2006, escrevi o livro “Como Fazíamos sem…” que conta a história de 30 invenções que estão hoje completamente inseridas em nosso dia a dia. Em quase todos os capítulos é possível encontrar uma reação adversa de pensadores influentes de sua época àquela novidade. O garfo, por exemplo, causou furor em algumas partes da Europa. Afinal, “Deus, em sua sabedoria, deu ao homem garfos naturais, seus dedos” – escreveu um padre italiano no século XI (seguramente o mais perto de um influencer da época).
Não vou me arriscar a achar uma explicação para esse nosso medo profundo. Hoje, com este brinde, só quero reconhecer que ele existe. E nos lembrar que a realidade tem se mostrado muito mais otimista. Quando você sentir que algo é frio, distante e pouco humano ou natural, talvez queira se lembrar daqueles moradores de Bagé, tão preocupados com o fim do assobio. Se ainda tiver dúvidas sobre se eles tinham alguma razão, dê um pulo no YouTube e procure por assobio. Você vai ver que essa arte milenar segue firme e forte entre nós.
Este texto é de responsabilidade de seu autor e não reflete, necessariamente, a opinião da Fast Company Brasil