Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais…

Crédito: Fast Company Brasil

Claudia Penteado 4 minutos de leitura

Recusa é uma palavra definida no dicionário jurídico como: não aceitar uma coisa oferecida; declinar; repelir: recusar, não conceder o que é pedido. Resistir a, não aceder: desaceitar, não admitir, fugir a, evitar.

A recusa como mecanismo de acomodação

A história social do negro no Brasil é marcada por esse sentimento de recusa. Durante todo o processo de escravidão no Brasil, as condições de vida da população eram similares às condições dos bichos, salvo pelo fato de que o negro não poderia morrer rapidamente, porque era ele que movimentava primeiro a colônia e depois o país. Segundo o pesquisador André Schröder (para o site Super Interessante), entre 1501 e 1870 cerca de 12,5 milhões de pessoas foram arrancadas do continente africano para trabalhar forçadamente no outro lado do Oceano Atlântico, e desses 12,5 milhões de negros embarcados na África, 20% não chegaram vivos ao destino, vítimas de disenteria, escorbuto, varíola, sífilis e sarampo, ou da brutalidade dos comandantes. Muitas vezes, os corpos dos mortos jaziam por dias junto dos vivos até serem lançados ao mar.

Devido a graves infecções oculares, era comum o desembarque de escravos cegos. No século 16, a travessia podia levar meses, a depender das condições climáticas, mas, a partir da metade do século seguinte, a viagem durava entre 30 e 50 dias.

Ainda segundo Schröder, não há documentos precisos sobre a chegada dos primeiros negros escravizados ao Brasil, mas os desembarques oficiais tiveram início na década de 1530, também destinados à indústria da cana de açúcar que começava a se posicionar como grande mola econômica da colônia. Não podemos esquecer da presença indígena que aqui estava antes mesmo da chegada do colonizador. Conta-se que que a população indígena no Brasil foi dizimada em poucos anos. 

Segundo a Funai, a população indígena no Brasil, em 1500, equivalia a aproximadamente 3 milhões de habitantes, dos quais cerca de 2 milhões estavam estabelecidos no litoral. Por volta de 1650, esse número caiu para 700 mil, e em 1957 chegou a 70 mil indígenas, o número mais baixo registrado. A partir daí, a população indígena começou a crescer.  De acordo com o último censo demográfico realizado em 2010 pelo IBGE, há 896,9 mil indígenas no país, o equivalente a 29,9% da população estimada para 1500, quando começou a colonização. Ou seja, a população indígena caiu de quase 3 milhões para 70 mil em pouco mais de 400 anos – um verdadeiro genocídio. 

Em 1583, o Brasil contava 14 mil escravos, um número que subiria constantemente até o auge do tráfico negreiro no país, entre 1800 e 1850, período em que 2,3 milhões de negros aportaram aqui. O Brasil foi o país que mais recebeu escravos nas Américas e o último no mundo a abolir a escravidão. 

Esse contingente de pessoas que foram arrancadas de suas famílias, culturas e países, trouxeram consigo seus modos de resistência. Enquanto a população não negra oferecia aos negros a violência, os negros replicavam com suas formas mais diversificadas de resistir e existir. A recusa em reconhecer a experiência negativa a que essas pessoas foram submetidas é sem dúvida uma desonestidade. 

Se fizermos uma autoanálise sobre os espaços de poder que ocupamos como pessoas não negras, também chamado de teste do pescoço, iremos rapidamente reconhecer o vazio negro em locais de prestígio e tomada de decisão na nossa sociedade. É preciso redescobrir como é que que a população negra e não negra veio parar no Brasil. A gente tem vários indícios históricos sobre isso, há inúmeras literaturas que comprovam como se deram essas duas chegadas. 

Duas coisas são importantes saber para orientar sua busca, e a primeira é que: enquanto uma população foi arrancada de sua terra natal e trazida para Brasil de qualquer maneira, caminhando contra o vento sem lenço e sem documento num sol de quase 300, a outra veio em segurança, com viagem paga com garantia de trabalho, moradia, terras e o que é muito importante, acesso a educação.  

É preciso ser muito desonesto para recusar os impactos da escravidão na forma como os negros se organizam hoje, no patrimônio que eles possuem, no que os mais velhos deixam para os seus descendentes- e sempre haverá alguém para dizer: o meu bisavô, avô, veio para o Brasil e construiu tudo do nada! Mentira, do nada construíram os negros, os demais tiveram poucas oportunidade e muito suor, mas ainda é mais fácil construir do quase nada que às vezes é um emprego mal remunerado, do que construir do nada, literalmente nada. 

Só se recusa a aceitar as estruturas do racismo, que estrutura as estruturas desde 1500 até hoje, quem dele desconhece por pura preguiça. É preciso voltar aos livros de história. 

Nessa semana da consciência negra, é preciso ter consciência, reflexão, honestidade na reflexão, espaço de reconhecimento do privilégio de não ser negro. A psicanálise define recusa da seguinte forma: atitude contrária ao reconhecimento de uma realidade de caráter traumático, como mecanismo de defesa [para Freud, esse mecanismo explica o fetichismo e as psicoses].

Dito isto, ainda somos os mesmo e vivemos como nosso pais!

 


SOBRE A AUTORA

Claudia Penteado é editora chefe da Fast Company Brasil. saiba mais