A era da arte sintética já começou. E agora?
O Teste de Turing estético não se resume a saber se uma máquina pode nos enganar; ele nos obriga a refletir sobre o que realmente buscamos na arte

Se você abrir a edição de agosto da revista “Vogue”, vai encontrar um anúncio da marca Guess com uma modelo deslumbrante. Mas, em letras miúdas, há uma revelação surpreendente: ela não existe. Foi criada inteiramente por inteligência artificial.
Retocar imagens digitalmente sempre fez parte do mundo da moda. Mas, neste caso, não se trata de ajustar a foto de uma pessoa real, e sim de uma composição de dados projetada para parecer uma mulher perfeita.
A reação do público foi imediata. A modelo Felicity Hayward classificou a campanha como “preguiçosa e barata”, enfatizando o desserviço que ela presta à luta pela diversidade. Afinal, por que contratar modelos de diferentes tamanhos, idades e etnias se uma máquina pode gerar sob medida um ideal de beleza estrito e “aprovado pelo mercado”?
Essa nova realidade não é necessariamente apocalíptica. Mas, diante da dificuldade – ou até impossibilidade – de distinguir criações humanas de produções artificiais, precisamos nos perguntar: o que se ganha e o que se perde com essa tecnologia? E, acima de tudo, o que isso revela sobre o que realmente valorizamos na arte?
Em 1950, o cientista da computação Alan Turing se perguntou se uma máquina poderia demonstrar inteligência de forma indistinguível da humana. Para isso, criou o famoso “jogo da imitação”: um avaliador tenta descobrir se está conversando com uma pessoa ou um computador. Se não consegue notar a diferença, a máquina passa no teste.
Durante décadas, isso foi apenas um exercício teórico. Mas, com o avanço recente dos chatbots, muitos acreditam que o Teste de Turing original já foi superado. Surge, então, uma nova questão: se a IA já é capaz de conversar, será que também pode produzir arte?
a arte criada por inteligência artificial não tem história e carece de uma narrativa humana.
Tudo indica que sim – a inteligência artificial parece já ter passado no que podemos chamar de “Teste de Turing estético”.
Hoje, algoritmos conseguem criar músicas, imagens e até filmes tão convincentes que se tornam praticamente indistinguíveis das criações humanas. Plataformas como Suno e Udio, por exemplo, já geram canções originais, com vocais e letras, em qualquer estilo, em questão de segundos.
As imagens fotorrealistas também enganam com facilidade. Em 2023, milhões de pessoas acreditaram que a famosa foto do papa Francisco usando um casaco puffer era real – um exemplo claro do poder da IA em criar ficções convincentes.
COMO NOSSO CÉREBRO É ENGANADO
Mas por que caímos tão facilmente nessas ilusões?
Primeiro, porque a IA se tornou especialista em reproduzir padrões humanos. Treinados com imensas bibliotecas de obras de arte, músicas e fotos, esses modelos absorveram mais referências do que qualquer ser humano conseguiria. Eles não têm alma, mas aprenderam a fórmula matemática do que achamos belo e cativante.
Segundo, a IA conseguiu superar o chamado vale da estranheza – aquela sensação desconfortável diante de algo quase humano, mas não totalmente, como robôs humanoides ou bonecas com olhar vazio. Essa reação funcionava como um detector natural de falsificações. Mas os sistemas mais recentes já não cometem os pequenos erros que despertavam nossa desconfiança.

Por fim, a IA não apenas imita a realidade: cria uma versão “aperfeiçoada” dela. O filósofo francês Jean Baudrillard chamava isso de “simulacro” – uma cópia sem original.
É exatamente o que acontece com a modelo na “Vogue”: não se trata do retrato de uma mulher de verdade, mas um ideal hiper-real que nenhuma pessoa poderia alcançar. O público não a percebe como falsa justamente porque ela parece, de certo modo, mais “perfeita” que a realidade.
Quando a arte pode ser gerada com tanta facilidade – e sua origem é tão difícil de verificar –, corremos o risco de perder algo essencial.
ARTE SINTÉTICA NÃO TEM AURA
O pensador Walter Benjamin falava da “aura” da obra original: aquela sensação de história e presença humana que a torna única. Uma pintura tem aura porque mostra as pinceladas do artista; uma fotografia antiga tem aura porque captura um instante real.
Já a arte criada por inteligência artificial, não. Ela é infinitamente replicável, não tem história e carece de uma narrativa humana. Por isso, mesmo quando tecnicamente impecável, pode soar vazia.

Quando começamos a desconfiar da origem de uma obra, o ato de ouvir uma música ou ver uma imagem deixa de ser apenas uma experiência emocional e passa a exigir uma análise: procurar sinais estatísticos da máquina por trás. Essa dúvida nos tira do mergulho emocional que a arte costuma proporcionar.
O Teste de Turing estético não se resume a saber se uma máquina pode nos enganar. Ele nos obriga a refletir sobre o que realmente buscamos na arte. Se uma música criada por IA emociona alguém, importa o fato de que a máquina não sentiu nada ao criá-la? O verdadeiro valor da arte está na mente de quem cria ou no coração de quem recebe?
Criamos um espelho que reflete nossa própria criatividade de volta para nós. Agora precisamos decidir: preferimos a perfeição sem humanidade ou a imperfeição cheia de sentido? O reflexo impecável e descartável ou o espelho distorcido – e fascinante – da mente humana?
Este artigo foi republicado do “The Conversation” sob licença Creative Commons. Leia o artigo original.