Além do streaming e da inteligência artificial: o cinema busca novos caminhos
Ao apostar em experiências presenciais, o estúdio independente A24 mostra como a criatividade humana ainda é a arma mais poderosa contra a saturação da IA

Muito se falou sobre a aquisição do Teatro Cherry Lane pelo estúdio A24 (que fez “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, entre outros filmes de sucesso).
Mais antigo teatro off-Broadway em funcionamento contínuo em Nova York, o Chery Lane reabriu há um mês, com uma semana inteira de performances e eventos especiais – incluindo a participação de nomes importantes da indústria, como Spike Lee e Sofia Coppola.
O que poderia parecer um projeto excêntrico de um estúdio independente conhecido por filmes como “Lady Bird”, “Joias Brutas” e “Hereditário” é, na realidade, um movimento calculado em uma indústria marcada pela disrupção e pela fadiga do streaming.
A performance ao vivo é uma das poucas experiências culturais que não podem ser automatizadas, replicadas ou reproduzidas sob demanda. Ao entrar no teatro, o A24 cria uma espécie de proteção contra um futuro saturado de inteligência artificial, ao mesmo tempo em que aprofunda sua pegada cultural.

Quando o negócio foi anunciado, no fim de 2023, as especulações tinham um tom pragmático. “É sobre sinergias criativas.” “Eles estão diversificando suas receitas para reduzir a volatilidade do cinema.” “Podem testar novas histórias em um ambiente de baixo risco.”
Eram todos comentários válidos. Mas então um amigo, executivo experiente da indústria cinematográfica, levantou uma hipótese intrigante: “será que eles não estão se diferenciando ainda mais ao construir uma marca à prova do futuro?” Para mim, a partir daí, tudo ganhou outra perspectiva.
A maioria dos estúdios de cinema entende que suas franquias são marcas que podem ser exploradas. Mas, quando o assunto é a própria identidade, há pouca ou nenhuma atenção a uma boa narrativa sobre o que eles representam.
Existe apenas um setor que se comporta de forma parecida: a indústria farmacêutica. As grandes empresas querem que seus pacientes conheçam os nomes dos remédios – Prilosec, Viagra, Prozac – mas não se preocupam com a percepção sobre elas mesmas.
O A24 foge à regra. É um dos raros estúdios de Hollywood que parece construir uma marca genuinamente querida. As perguntas a fazer são: como eles estão construindo uma marca de classe mundial? E por que isso importa?

O CONTEÚDO AINDA É REI
Uma ideia simples continua válida em um mundo em rápida transformação: a criatividade vence – cada vez mais. O ditado “o conteúdo é rei” circula na indústria do entretenimento há anos, mas parece ser esquecido a cada novo ciclo de negócios.
Em seu lugar, multiplicam-se frases como “estamos aproveitando análises de público orientadas por IA e algoritmos preditivos para revolucionar a criação de conteúdo por meio de otimização em tempo real de sentimentos” ou “é uma mudança de paradigma que democratiza a narrativa através de matrizes orientadas por dados”.

Fica cada vez mais evidente que o público não quer um modelo gerado por IA nos comerciais de cerveja ou música feita por máquina “que o Nirvana poderia ter escrito”. O que as pessoas querem é surpresa, frescor, novidade.
As marcas que realmente importam hoje são as ousadas. Os cinco grandes estúdios de Hollywood ((Universal, Paramount, Warner Bros., Disney e Sony) são empresas de capital aberto, o que os obriga a priorizar retorno para acionistas e mitigação de risco.

Mas os maiores retornos históricos no cinema, seja em percentual ou em expansão para novos negócios, vieram justamente dos que se arriscaram. O A24 exemplifica esse espírito hoje, e a compra do Cherry Lane é a mais recente prova disso.
OUSADIA CRIATIVA
Outro princípio central na construção de uma marca forte para um estúdio é o mesmo conselho que vale para empresas em geral: “faça o que os robôs não podem.” No fundo, é um eufemismo para valorizar a interação humana.
Isso é especialmente relevante agora. Especialistas reconhecem que estamos vivendo uma “epidemia de solidão”. Nesse contexto, o A24 não está apenas comprando um prédio: está investindo no tipo de experiência presencial que as pessoas desejam.

De forma consciente ou intuitiva, o estúdio vem consolidando uma marca cada vez mais poderosa, que se traduz em ousadia criativa. Criou uma base de fãs quase cult que se identifica com esse universo, e isso lhe dá licença para expandir para qualquer área de negócio que compartilhe da mesma visão.
O Cherry Lane é um movimento inicial fascinante que protege a empresa de um futuro saturado por IA. A pergunta é: outros seguirão esse caminho?

Será que os estúdios também vão enxergar oportunidade em reunir pessoas, talvez incorporando experiências de cinema de próxima geração aos seus negócios? Poderiam mesclar hospitalidade e entretenimento em parcerias para criar locais imersivos?
A porta está aberta. E o A24 foi o primeiro a atravessá-la.
Com informações da Fast Company Brasil