Como artistas e criadores podem proteger seu legado – mesmo após a morte

Nos EUA, a lei garante ao criador de uma obra direitos exclusivos durante sua vida e por mais 70 anos depois de sua morte

Créditos: Fons Heijnsbroek/ abstract-art/ Eduard Gross/ Simon Lee/ 8machine/ Unsplash

Naomi Cahn e Reid Kress Weisbord 4 minutos de leitura

Michael Crichton, criador de “ER: Plantão Médico” e autor de “O Parque dos Dinossauros”, faleceu em 2008. Então, por que existe um processo aberto em seu nome contra a Warner Bros.? Acontece que, quando Crichton concordou em desenvolver a série “ER”, ele manteve o direito de aprovar – ou rejeitar – qualquer sequência. E esse direito continua valendo, mesmo após sua morte.

Agora que a Warner está produzindo um novo drama médico, chamado “The Pitt”, os detentores das obras do autor afirmam que a nova produção é basicamente um reboot da série dos anos 90. Embora tenha algumas semelhanças, como alguns dos mesmos atores, o estúdio nega as acusações.

Essa disputa é apenas a mais recente de uma série de processos movidos para proteger o legado de artistas que já faleceram. Sim, mesmo após a morte, eles ainda mantêm algum controle sobre suas obras

Como professores de direito especializados em testamentos e propriedades, acompanhamos esses casos para ensinar nossos alunos como autores, artistas e outros criadores podem preservar seus legados. Algumas ações envolvendo celebridades mostram o quão difícil pode ser proteger os direitos de artistas – especialmente na era da inteligência artificial.

Quando um projeto para TV ou cinema é vendido, o comprador geralmente busca adquirir os direitos de produzir sequências, remakes e spin-offs baseados na propriedade intelectual original. Vender esses chamados “direitos derivados” permite que o criador maximize o valor da venda e que o estúdio explore a ideia ao máximo.

No entanto, Crichton tinha tanto prestígio na indústria que conseguiu negociar contratos mais favoráveis para alguns de seus projetos mais famosos. Ele garantiu uma cláusula rara de “direitos congelados”, exigindo sua aprovação para que a Warner Bros. produzisse qualquer “sequência, remake, spin-off ou outras obras derivadas” de “ER”.

No Brasil a série "ER" ganhou o nome de "Plantão Médico" (Crédito: Warner Bros.)

Essa cláusula ainda é válida, mesmo após sua morte, assim como outros direitos contratuais. Então, quando a Warner anunciou a produção de uma nova série médica estrelada por Noah Wyle, ator original de “Plantão Médico", a viúva de Crichton entrou com uma ação contra o estúdio, alegando que “The Pitt” seria um reboot não autorizado.

DIREITOS AUTORAIS APÓS A MORTE

Nos EUA, a lei garante ao criador de uma obra direitos exclusivos sobre ela durante sua vida e por mais 70 anos (é assim também no Brasil). Após sua morte, seus herdeiros ainda podem fazer valer esses direitos.

Recentemente, por exemplo, os detentores das obras de Isaac Hayes contestaram o uso da música “Hold On, I’m Comin” pela campanha presidencial de Donald Trump. De acordo com o processo, a canção foi “usada ilegalmente” pelo menos 133 vezes desde 2020. A ação exige que o candidato pare de usá-la e está pedindo US$ 3 milhões em royalties pelas reproduções anteriores.

Outro caso recente envolveu o álbum “Vultures 1”, colaboração entre os rappers Ye (anteriormente conhecido como Kanye West) e Ty Dolla $ign. Segundo o processo, umas das faixas continha uma “interpolação não autorizada” da música “I Feel Love”, de Donna Summer, hit de 1977 – ela morreu em 2012.

Em uma ação movida em fevereiro de 2024, os detentores dos direitos das obras da artista explicaram que haviam rejeitado o pedido de licenciamento da música porque “não queriam qualquer associação com o histórico controverso de West”.

Mesmo com a recusa, os rappers “regravaram quase literalmente as partes principais e memoráveis da icônica canção de Summer, usaram-na como gancho em uma de suas músicas e a lançaram sabendo que não tinham permissão dos proprietários legítimos e nenhum direito legal de fazê-lo”, diz o processo.

Quando as partes chegaram a um acordo, em junho, o advogado que representava os interesses da artista afirmou publicamente que o documento não incluía a permissão para licenciar a faixa.

DIREITOS DE IMAGEM E LEGADO

A lei também permite que as pessoas impeçam o uso comercial de sua identidade, incluindo nome e imagem, sem consentimento.

Quando o astro do rock Little Richard faleceu, em 2020, seu testamento concedeu direitos de propriedade intelectual a nove pessoas, incentivando-as a “cooperar entre si para chegar a um acordo” sobre seus direitos de imagem. Depois que todos chegassem a uma decisão, qualquer beneficiário que interferisse perderia o direito ao dinheiro.

O irmão do artista, Peyton Penniman, escreveu uma carta a um comprador que havia concordado em adquirir os direitos de imagem, insinuando que o espólio estava sendo “roubado”. No dia seguinte, o comprador desistiu do negócio.

No início deste mês, um tribunal do estado do Tennessee decidiu que as ações de Peyton prejudicaram os outros beneficiários e ele perdeu seus direitos.

Quem herda os direitos autorais ou de imagem de uma celebridade após sua morte pode não apenas preservar o legado do artista, mas também controlar o que o público pode ver e ouvir.


SOBRE O AUTOR

Naomi Cahn é professora de direito na Universidade de Virgínia. Reid Kress Weisbord é professor de direito na Universidade Newark. saiba mais