Engenhosidade: como era a segurança das mensagens antes da encriptação

Livro resgata a arte esquecida do letterlocking, uma técnica engenhosa de dobradura e lacre usada para manter mensagens a salvo de olhos curiosos

Imagens: Galeria Nacional de Arte de Washington/ Biblioteca do MIT

Steven Melendez 3 minutos de leitura

Muito antes das mensagens criptografadas e das videochamadas seguras, as pessoas contavam com soluções físicas para manter suas mensagens escritas protegidas contra bisbilhoteiros. Elas usavam métodos engenhosos para dobrar, lacrar e reforçar suas cartas, garantindo que chegassem intactas e seguras ao seu destino.

Em um novo livro, os pesquisadores Jana Dambrogio e Daniel Starza Smith exploram as técnicas de letterlocking – um conjunto de métodos usados por figuras históricas como a rainha Elizabeth I e a poeta Emily Dickinson para proteger o conteúdo de suas cartas. Os autores também explicam como vêm decifrando esses documentos históricos com o uso de imagens de raio-X, algoritmos e modelagem em papel.

Dambrogio, conservadora das bibliotecas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), conta que seu interesse pelo tema começou há cerca de 25 anos, quando ganhou uma bolsa de estudos nos arquivos do Vaticano.

Lá, percebeu que muitos documentos jurídicos e contábeis antigos traziam mecanismos criados para garantir sua autenticidade, evitar violações e deixar visíveis quaisquer sinais de adulteração.

Além de fascinantes por si só, entender essas soluções também era crucial para preservar os documentos sem apagar, sem querer, os elementos de segurança durante processos de restauração.

“Esses documentos são como cápsulas do tempo”, afirma Dambrogio. “Se eu mudar alguma coisa sem saber exatamente o que estou fazendo, o objeto perde sua voz.”

Para compreender melhor como esses documentos funcionavam, ela construiu mais de 100 modelos. Mais tarde, se uniu a Daniel Starza Smith, hoje professor de literatura inglesa do King’s College de Londres.

Smith explica que, embora muitos estudiosos se interessem pelo aspecto físico dos manuscritos históricos, poucos tinham se aprofundado na parte técnica de como as cartas eram realmente montadas.

Retrato de Quintilia Fischieri com exemplo de letterlocking
Retrato de Quintilia Fischieri com uma carta selada, por volta do ano 1600 (Imagem: Galeria Nacional de Arte de Washington D.C.)

“Quando Jana me mostrou os modelos, tudo passou a fazer sentido”, ele lembra. “Dava para ver claramente, nas reconstruções, como esses objetos funcionavam como dispositivos projetados para viajar longas distâncias mantendo o conteúdo seguro.”

A dupla passou então a estudar o que batizaram de letterlocking, reconstruindo com precisão as diversas formas como as cartas eram dobradas e lacradas.

Algumas técnicas envolviam criar verdadeiras travas com tiras do próprio papel da carta. O remetente podia usá-las para confirmar que o conteúdo não havia sido violado. Essas tiras passavam por cortes cuidadosamente feitos na carta dobrada e eram seladas com cera.

Com o tempo, os pesquisadores começaram a organizar uma espécie de taxonomia do letterlocking – um diagrama inspirado na tabela periódica que classifica as combinações de dobras, inserções, furos e selos usadas para proteger as cartas. Isso os ajudou a criar uma linguagem comum para descrever e comparar as técnicas.

Quando descobriram a Coleção Brienne – um baú que pertenceu a um dos chefes do correio holandês contendo cerca de 2,6 mil cartas não entregues dos séculos 17 e 18 –, eles reuniram uma equipe multidisciplinar para estudar os lacres e os conteúdos das cartas sem abri-las.

Especialistas em raio-X fizeram imagens de alta resolução dos documentos, enquanto cientistas da computação criaram algoritmos de visão computacional para fazer o “desdobramento virtual” das cartas.

O artigo resultante, publicado na revista “Nature” em 2021, já foi citado em pesquisas de áreas como inteligência artificial, criptografia e história da literatura.

PESQUISAS SOBRE LETTERLOCKING

Por meio de vídeos no YouTube e diagramas detalhados incluídos no livro, os autores esperam incentivar mais pessoas a explorar esse campo. Eles encorajam estudiosos a criar seus próprios modelos, mesmo sem experiência prévia com engenharia ou artes em papel.

Embora o letterlocking tenha caído em desuso com o surgimento dos envelopes autoadesivos, no século 19, os princípios por trás dessas técnicas continuam atuais: segurança, autenticidade e estética. Mesmo no mundo digital, esses objetivos ainda fazem parte da forma como nos comunicamos.

“O desejo das pessoas, em qualquer época ou lugar, é o mesmo: se comunicar e garantir que a mensagem chegue apenas ao destinatário certo”, diz Dambrogio. “Hoje, a gente faz isso com autenticação em duas etapas para acessar a conta do banco, por exemplo.”


SOBRE O AUTOR

Steven Melendez é jornalista independente e vive em Nova Orleans. saiba mais