Há 70 anos, Godzilla vem sendo um ferrenho defensor da humanidade

O filme “Godzilla”, de 1954, inaugurou uma franquia que, nos últimos 70 anos, tem alertado os espectadores para que cuidem melhor da Terra

Crédito: Fast Company Brasil

Amanda Kennell e Jessica McManus Warnell 5 minutos de leitura

O Prêmio Nobel da Paz de 2024 foi concedido à Nihon Hidankyo, a Confederação Japonesa de Organizações de Vítimas das Bombas A e H. Muitas dessas testemunhas passaram a vida alertando sobre os perigos da guerra nuclear. Mas, no início, grande parte do mundo não queria saber disso.

“Os destinos daqueles que sobreviveram aos infernos de Hiroshima e Nagasaki foram encobertos e ignorados por muito tempo”, observou o comitê do Nobel em seu anúncio. Grupos locais de sobreviventes do ataque nuclear criaram o Nihon Hidankyo em 1956 para lutar contra esse apagamento.

Na mesma época em que o Nihon Hidankyo foi formado, o Japão criou um outro tipo de alerta: um monstro gigantesco que derruba Tóquio com rajadas de ar radioativo. 

O filme "Godzilla", de 1954, inaugurou uma franquia que, nos últimos 70 anos, tem alertado os espectadores para que cuidem melhor da Terra. Esses filmes transmitem uma mensagem vital sobre a crescente catástrofe ambiental do planeta. Poucos sobreviventes sobraram para alertar a humanidade sobre os efeitos das armas nucleares, mas Godzilla permanece eterno.

Em 1954, o Japão havia sobrevivido a quase uma década de exposição nuclear. Além dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, o povo japonês foi afetado por uma série de testes nucleares dos EUA no atol de Bikini. Quando os EUA testaram a primeira bomba de hidrogênio do mundo, em 1954, a devastação foi muito além da zona de dano esperada. 

Embora estivesse longe da zona restrita, o barco de pesca japonês Lucky Dragon No. 5 e sua tripulação foram encharcados com cinzas de radiação. Todos ficaram doentes e um pescador morreu em um ano.

Essa tragédia foi amplamente coberta pela imprensa japonesa enquanto se desenrolava. O evento é repetido em uma cena  no início de Godzilla, na qual barcos indefesos são destruídos por uma força invisível.

Godzilla é repleto de debates sociais profundos, personagens complexos e efeitos especiais de última geração para a época. Grande parte do filme envolve personagens discutindo suas responsabilidades – uns com os outros, com a sociedade e com o meio ambiente.

Essa seriedade, assim como o próprio filme, foi praticamente enterrada fora do Japão por um alter ego, "Godzilla, King of the Monsters!" (Godzilla: Rei dos Monstros!) , de 1956! Os licenciadores norte-americanos cortaram o filme de 1954, removeram cenas lentas, fizeram novas filmagens, juntaram tudo e dublaram em inglês, com um roteiro voltado para a ação que eles mesmos escreveram.

Foi essa a versão que as pessoas fora do Japão conheceram como sendo Godzilla, até que o filme original fosse lançado internacionalmente por ocasião de seu 50º aniversário, em 2004.

DA RADIAÇÃO À POLUIÇÃO

Enquanto o “Rei dos Monstros!” viajava pelo mundo, "Godzilla" gerou dezenas de continuações e spin-offs japoneses. Nos filmes japoneses, a criatura lentamente se transformou de um monstro assassino em um monstruoso defensor da humanidade – uma transição que também se refletiu nos filmes posteriores produzidos nos EUA.

Em 1971, uma equipe criativa nova e mais jovem tentou redefinir Godzilla para uma nova era, com "Godzilla vs. Hedorah". O diretor Yoshimitsu Banno juntou-se à equipe enquanto promovia um documentário recém-concluído sobre desastres naturais. Essa experiência o inspirou a redirecionar o tema das questões nucleares para a poluição.

O filme é sobre as batalhas de Godzilla contra Hedorah, um alienígena que caiu na Terra em um acidente e cresceu até atingir um tamanho monstruoso, se alimentando de lama tóxica e outras formas de poluição. O filme começa com uma mulher cantando “jazzisticamente” sobre o apocalipse ambiental, enquanto jovens dançam sem parar em uma boate subterrânea.

Depois que Godzilla derrota Hedorah, no final, ele retira um punhado de lodo tóxico do torso do oponente, olha para o material e depois se vira para encarar os espectadores humanos – tanto os que estão na tela quanto os que estão na plateia. A mensagem é clara: não fique apenas cantando sobre a desgraça iminente, tome uma atitude, faça alguma coisa!

"Godzilla vs. Hedorah" foi um fracasso de bilheteria, mas ao longo do tempo se tornou um filme cult. A maneira como posiciona Godzilla entre a Terra e aqueles que a prejudicariam ressoa até hoje em duas franquias separada.

Uma linha vem do estúdio japonês original que produziu Godzilla. A outra é produzida por licenciadores dos EUA, criando eco-blockbusters que fundem o ambientalismo de Godzilla com o espetáculo de "Rei dos Monstros!".

O COLAPSO DA CONFIANÇA PÚBLICA

O desastre de Fukushima de 2011 já se tornou parte da memória coletiva do povo japonês. Antes disso, um terço da eletricidade do país era gerada por meio da energia nuclear.

A atitude do público em relação à energia nuclear endureceu após o desastre, especialmente porque as investigações mostraram que os órgãos reguladores haviam subestimado os riscos no local. Embora o Japão precise importar cerca de 90% da energia que utiliza, atualmente mais de 70% da população se opõe à energia nuclear.

"Godzilla Minus One" (Crédito: Toho Co.)

O primeiro filme japonês de Godzilla lançado após o desastre de Fukushima, "Shin Godzilla" (2016), recomeça a franquia em um Japão contemporâneo com um novo tipo de criatura, em um eco sinistro dos danos e da resposta governamental ao desastre triplo de Fukushima. 

Quando o governo japonês fica sem líder e em desordem após os contra-ataques iniciais a Godzilla, um funcionário público se une a um enviado especial dos EUA para congelar o recém-batizado Godzilla, antes que um mundo temeroso libere suas armas nucleares mais uma vez.

O sucesso da franquia sugere que, embora os governos nacionais tenham um papel importante a desempenhar em grandes desastres, uma recuperação bem-sucedida requer pessoas capacitadas para agir também por conta própria.

Este artigo foi republicado do "The Conversation" sob licença Creative Commons. Leia o artigo original.


SOBRE A AUTORA

Amanda Kennell é professora assistente de línguas e culturas asiáticas e Jessica McManus Warnell é professora de organização e admin... saiba mais