Caos climático cria novo sentimento: solastalgia

Filósofo australiano Glenn Albrecht analisa como novos sentimentos de desamparo surgem com a alteração extrema do meio ambiente

Créditos: Oz Seyrek / Unsplash

Camila de Lira 5 minutos de leitura

A praia da infância tomada pelo mar. A cidade continua a mesma, mas aquela faixa de areia não. A alta dos níveis dos oceanos e das temperaturas mudaram, de vez, a paisagem do planeta. De quebra, criaram em todos nós um novo tipo de melancolia: a saudade do meio ambiente preservado e sem alterações.

O sentimento tem um nome: solastalgia. Criado em 2005 pelo filósofo Glenn Albrecht, o termo tenta abarcar a angústia experimentada quando o lugar que a pessoa conhece e ama está sendo degradado ou alterado de maneira extrema. Com o tempo, a palavra passou a ser usada por profissionais da medicina e psicologia para definir parte dos impactos que o caos climático têm na saúde mental coletiva. 

Filósofo ambientalista, Albrecht é professor e pesquisador da Universidade de Sidney, na Austrália. Para ele, o ato de nomear tais emoções é o primeiro passo para a sociedade superá-las. "Quando a definição existe, as pessoas começam a perceber que compartilham a mesma angústia e tristeza pelo que está acontecendo. E podem perceber que a causa é a mesma.", diz. 

O termo vem a partir da combinação das palavras latinas sōlācium (conforto) e da raiz grega algia (dor, sofrimento, pesar). 

Mas foi um outro sentimento negativo que fez a obra de Albrecht ganhar força nos últimos anos: a ansiedade climática. O medo crônico da catástrofe ambiental aumenta com a escalada dos eventos extremos do clima. Nos últimos 5 anos, os brasileiros buscaram 73 vezes mais por "ansiedade climática" no Google. 

Em 2023, quando o assunto foi mais pesquisado, o Brasil passou por mais de 1,1 mil desastres relacionados a eventos climáticos extremos, desde enchentes até deslizamentos de terra. De acordo com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2023 foi o ano recorde de ocorrências destes tipos, atingindo 55% da população nacional.

“A ansiedade climática está aumentando porque sabemos que, no futuro próximo, a situação pode ser ainda pior. A ansiedade é um sentimento orientado pelo futuro. Já a solastalgia é baseada na experiência de quem está vivendo a mudança no dia a dia, naquele exato momento", diferencia Glenn.

A casa não existe mais

O filósofo explica que o termo “nostalgia” foi criado em 1688 pelo médico suíço Johannes Hofer. Na época, a expressão tentava explicar um tipo específico de aflição mental que ocorria com soldados quando estes passavam muitos meses longe de casa. Depois de séculos, a palavra perdeu a conotação médica, para tratar  de uma melancolia para aqueles que sentem falta de outras épocas ou de lugares familiares.

“No caso da solastalgia, a sensação é de que o ambiente familiar, a casa está partindo, deixando de ser aquele espaço” . Com a deterioração do ambiente, também se perde o senso de pertencimento e identidade. Afinal, se você não se vê mais naquilo que antes era a sua casa, o que significa estar em casa?

Esse desamparo é um sentimento tão global quanto o caos climático. As transformações do espaço não acontecem apenas por ação do calor ou do frio. A mineração a céu aberto na Austrália, por exemplo, modificou tanto certos horizontes, que motivou Glenn a analisar o sentimento daqueles que viviam ao redor das minas. Daí surgiu o termo solastalgia.

O tema é referenciado pelo artista plástico brasileiro Lucas Bambozzi, que abriu uma exposição com o título "solastalgia" no Museu de Arte Contemporânea em São Paulo (MAC-USP) no ano passado. Em instalações pelos corredores da galeria, foram usadas fotos de mineração em poço aberto. O impacto visual da terra cortada e da paisagem alterada pelo extrativismo faz o espectador lembrar de outras rupturas drásticas do meio ambiente, causadas pela ação do homem.

Situações como o desastre de Brumadinho, o afundamento do bairro de Muntage, em Maceió, ou as áreas desmatadas da Amazônia para dar lugar aos garimpos foram resultado de ações humanas. "A causa da solastalgia é a estrutura social e econômica. Ou seja, a solução passa pela mudança em tais estruturas", aponta

Em sua nova obra "Earth Emotions", ainda não traduzida para o Brasil, Glenn explica um outro conceito, dessa vez positivo: o simbioceno (do inglês symbiocene). Ou seja, uma nova era caracterizada pelas interações harmoniosas entre humanos e outros seres vivos. Vivendo em benefício mútuo, e não com a mente da extração para hiperprodução e consumo. 

"A maioria de nós está ouvindo que não há esperança, que precisamos desistir, que o apocalipse está chegando. A gente tem que se recusar a aceitar que esse é o nosso futuro"

Uma não-revolução

O simbioceno trará mudanças drásticas no modo de vida e nas tecnologias, de acordo com o professor. "Tudo começa com um nome, com um pensamento, depois ele tende a ser transferido para nossa tecnologia, design, arquitetura, negócios….Como filósofo, tenho que começar do início", diz.

Biomimética e biofilia fazem parte do simbioceno. No Reino Unido, arquitetos da PLP Labs usaram a ideia da simbiose extrema para criar tijolos biodegradáveis, feitos a partir de mycelium, um tipo de cogumelo. Segundo Glenn, a forma de pensar o simbioceno é aquela que privilegia todos os saberes, principalmente o saber da natureza.

"Todos nós fazemos parte de uma grande colaboração chamada vida, o simbioceno é a força que tem propósito de construir e prolongar a vida, e não de explorar e extrair vida". Beneficiar o que é vivo significa entender que o que nos manteve em pé na Terra é a capacidade de trabalhar em grupo. 

O capitalismo extrativista, explica o filósofo, se estruturou a partir da ideia de que apenas os mais fortes sobrevivem. Tal ideia levou ao caos climático e à nostalgia, já que o ambiente é visto como o eixo que o humano precisa dominar para se mostrar forte.

Não se trata de uma revolução, mas quebra completa de todas as estruturas que criam desamparos e destroem a capacidade de pensar diferente. Imaginar novos sistemas para um futuro desejável é, segundo Glenn, "muito mais difícil". 

"Porque a maioria de nós está ouvindo que não há esperança, que precisamos desistir, que o apocalipse está chegando. A gente tem que se recusar a aceitar que esse é o nosso futuro".

A filosofia pode não ter uma palavra para este sentimento. Mas o carnaval brasileiro, ou melhor, a cantora Ivete Sangalo tem: macetar o apocalipse.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais