Carbono zero ou “desigualdade zero”? Qual agenda ESG combina com o Brasil?
O selo Brasil para a agenda ESG coloca colaboradores e sociedade no ponto principal
Em 2004, a Organização das Nações Unidas e o Banco Mundial lançaram um relatório no qual discutiam como aproximar o mercado financeiro do desenvolvimento sustentável. Em meio às quase 60 páginas do documento, uma palavra se destacou. Uma palavra não, três letras: ESG.
Usada para unificar as áreas de meio ambiente, social e governança nas empresas, a sigla acabou ganhando vida própria. Hoje, um dos principais debates em torno do tema é como aproximar as realidades de cada país do ESG. Como unir as pautas e as necessidades do Brasil com a agenda ESG, conectada com indicadores e prioridades globais? A resposta não está em excluir, mas em incluir.
“A ideia não é criar uma jabuticaba, mas trazer incrementos para a agenda”, afirma Felipe Nestrovsky, sócio na consultoria em ESG Nint. Na mesma linha, a especialista em ESG e business sales manager do Santander, Mônica Marcondes, argumenta que não dá para negligenciar uma frente em detrimento da outra.
Tropicalizar o ESG é uma obrigação, de acordo com Fábio Alperowitch, sócio-fundador da Fama Investimentos. Para ele, as pautas excessivamente importadas podem fazer com que as companhias brasileiras acabem “trocando as prioridades”, deixando de lado ações que impactam de fato a sociedade para adotar outras mais populares entre os acionistas e o mercado.
Uma dessas atividades é o “net zero”. “O fato de o mundo desenvolvido ser carbono cêntrico é ruim. O fato de o Brasil ser carbono cêntrico é horroroso”, critica Alperowitch.
Na sua opinião, a preocupação de algumas companhias em apenas zerar a emissão de carbono está gerando uma corrida por tecnologia, mas não por mudanças estruturais - seja na sociedade ou na própria estrutura de funcionamento da organização.
No entanto, parte do mercado ainda vê no carbono zero uma saída sustentável para a produtividade. “Carbono é para todo mundo. O Brasil tem uma oportunidade gigantesca no mercado mundial de créditos de carbono. Temos capital natural grande, matriz energética limpa. Carbono é, absolutamente, um tema brasileiro”, aponta a especialista em sustentabilidade Sonia Consiglio, reconhecida pelo Pacto Global da ONU como uma das profissionais que fazem um trabalho de referência na promoção dos objetivos de desenvolvimento sustentável.
A questão ambiental está “muito atrás” no Brasil, já que ainda há muita discussão sobre as melhores práticas no tema, acredita o CEO da Rede Brasil do Pacto Global da ONU, Carlo Pereira.
Já na questão social, as leis trabalhistas, de segurança no trabalho e de saúde dão respaldo para as ações das companhias. “Isso quer dizer que o clima está na frente das questões sociais nas empresas hoje em dia? Não exatamente”, comenta Pereira.
A preocupação em zerar a emissão de carbono está gerando uma corrida por tecnologia, mas não por mudanças estruturais.
Falar sobre zerar as emissões de carbono e reduzir o impacto na mudança climática também esbarra no tema da desigualdade social, segundo Nestrovsky. “Não é a Paulista ou a Faria Lima [avenidas em regiões nobres da cidade de São Paulo] que vão sofrer com alagamentos. Não investir em redução de emissões também é promover o aumento da desigualdade social”, diz o executivo.
Alperowitch lembra que agir para remediar a mudança climática não precisa se resumir a zerar as emissões de carbono. Para ele, agir contra o desmatamento e em favor de políticas ambientais mais duras também pode funcionar.
O FOCO NO “S”
O “S” do ESG – que abarca desde como a empresa trata os colaboradores até como ela se coloca para a população – é o ponto nevrálgico para se pensar o ESG brasileiro.
“Se formos listar o tamanho dos desafios que temos como nação, do ponto de vista social, infelizmente, a lista é longa. Tem gente na fila para comprar osso, tem indigenista e repórter desaparecido, tem o genocídio indígena, a desigualdade social. Existem pessoas em situação análoga à escravidão. É preciso falar sobre tudo isso.” , diz Alperowitch.
Para Mônica Marcondes, a rota para traçar o planejamento de sucesso no ESG passa, necessariamente, por nossas características como povo e sociedade. Dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) de 2021 mostram que a taxa de desemprego dos pretos ficou em torno de 16,8%, enquanto a dos brancos foi de 10,8%. A renda enfatiza ainda mais esse desnível: a média de rendimento de um trabalhador preto era R$ 1,9 mil, enquanto a de um branco, R$ 3,3 mil.
Os números indicam que o tema da diversidade racial está na raiz no ESG brasileiro. Assim como o da desigualdade social, que impacta direta e indiretamente a produtividade das empresas. Apesar de grande parte da solução desses problemas não estar apenas nas mãos do setor privado, dizem os especialistas, ele precisa acatá-los. Encarar o “elefante na sala de conferência” é um passo para a resolução, diz Alperowitch.
“O principal S do ESG é a saúde mental”, diz Carlo Pereira. Para ele, esse tema está no “ponto cego” das estratégias de ESG das empresas e deveria estar presente no debate nacional.
Grandes corporações têm registrado altos números de afastamento de funcionários devido ao esgotamento ou a burnout. “Não adianta garantir esforços para a contratação das pessoas se o ambiente para mantê-las não preserva sua identidade e saúde mental”, explica o CEO do Pacto Global no Brasil.
“Os desafios continuam porque sustentabilidade/ ESG é um alvo móvel. Quando a gente acha que chegou no fim, vemos que a linha de chegada mudou de lugar. E assim vai”, comenta Gláucia Terreo, ex-head do Global Reporting Initiative (GRI) no Brasil e atual sócia-dirertora da Walk4Good.
DE DENTRO PARA DENTRO
“O privilégio é proporcional à responsabilidade que se tem dentro da sociedade. Se esse tema não estiver na agenda, não é possível evoluir”, comenta Mônica. Ela e Gláucia concordam que, para começar a entender qual parte do ESG a companhia deve adotar, é necessário um “raio X”.
“O primeiro passo é um diagnóstico sincero: sentar em uma cadeira de analista e refletir. Só que quem está na cadeira é a pessoa jurídica”, diz Gláucia.
Carlo, do Pacto Global, menciona a importância de encontrar a “matriz de materialidade”, ou seja, relacionar quais pautas são importantes para stakeholders e para o negócio. “É uma forma de não sofrer influência externa ou de não investir apenas no tema da moda”, observa.
Enquanto Felipe Nestrovsky, da Nint, fala em criar um “tempero brasileiro” para a agenda ESG internacional, Carlo Pereira diz que o bom mesmo seria que as empresas fizessem o “arroz com feijão”, ou seja, fazer o básico corretamente.
Ter análises de balanço hídrico, por exemplo. Ou realizar um “censo” interno para entender a proporção de trabalhadores negros e brancos na empresa. Ou ter um inventário de emissões. “Muitas empresas já estão falando em comprar crédito de carbono, mas não sabem nem mesmo quanto emitem”, destaca Pereira.
Mônica acha que não é necessário criar uma agenda ESG brasileira porque ela já existe: se chama Constituição de 1988. O documento trata de qualidade de vida e também toca nas questões ambientais e trabalhistas. “Se todos cumprissem a Constituição, não precisaríamos estar falando de ESG. Já seria um paraíso”, acredita.