Flexível, sustentável e generoso: é o futuro feito de bambu
Planta cria alternativa de autonomia, liberdade e inovação em Minas Gerais, e quer tomar conta do Brasil
Na sabedoria chinesa, o bambu que se curva é mais forte que um carvalho que resiste. No Brasil, o bambu que se dobra em móveis, casas e redomas tem a chance de ser mais potente do que o concreto armado. Nas mãos do mestre Lúcio Ventania, o bambu que cresce longe das grandes lavouras é uma ferramenta de inovação, transformação social e sustentabilidade.
“O bambu é uma planta tão generosa que aguardou o momento dele para poder ganhar destaque””, afirma o educador, mestre bambuzeiro desde 1987, que passou mais de 20 anos percorrendo cidades no Brasil para levar as técnicas de construção e formação do bambu. Desde 2008, concentra seus ensinamentos no Centro de Referência do Bambu e das Tecnologias Sociais (Cerbambu) em Ravena, Minas Gerais.
Pelas mãos habilidosas e fala consciente de Ventania já passaram mais de 10 mil alunos, que aprendem técnicas de construção e design utilizando a planta. Ventania também foi responsável por co-assinar obras como a Escola de Culinária no Mercado de Belo Horizonte, que tem uma cúpula de bambu, num projeto de Marcelo Rosenbaum. O bambu também é parte do parque Ekoa, no Paraná, e da geodésica de 200 metros quadrados da Cerbambu.
“É uma aventura, ou uma inovação, seja lá o nome que quiser dar para produtos que não estejam dentro de uma cadeia produtiva explorada, geralmente, por brancos”, diz Ventania.
As características biológicas do bambu apenas realçam o seu papel como “matéria-prima do futuro”. A primeira é a taxa de crescimento: leva menos de cinco anos para atingir a altura máxima, de até 36 metros. Em algumas espécies, pode crescer até um metro por dia.
Em termos de comparação, o eucalipto para produção de madeira serrada é colhido depois de 12 ou 13 anos; o pinus leva entre oito e 12 anos para ser considerado apto a virar matéria-prima para a construção civil.
O material é considerado “carbono negativo”, por absorver gás carbônico e ainda produz 35% mais de oxigênio. Sua haste fina e delgada também é um ponto positivo: um espaço de 10 metros quadrados pode ter até 600 varas de 30 metros. A renovação se dá em ciclos assexuados de 100 anos, ou seja, não é necessário alternar com o plantio de outras culturas.
CONTRA O "MONUMENTALISMO"
As construções das quais Ventania participou mostram que há técnica para se levantar espaços gigantescos com bambu. No entanto, o educador não gostaria que a planta ficasse ligada apenas a esse tipo de construção. “Estamos buscando uma arquitetura menos monumental e mais social, trazendo o conceito da bambuzeria brasileira”, explica.
A bambuzeria brasileira se baseia no saber popular, na criação indígena e da população negra, em especial das mulheres negras. O educador frisa a importância da criação do conhecimento nacional sobre o assunto, absorvendo o que as populações ancestrais da América Latina já entendiam sobre a planta.
O plantio familiar, ocupando espaços menores, é possível com o bambu. Para ele, é o caminho para se criar pequenas construtoras comunitárias sustentáveis. “Meu investimento sempre foi na autonomia, no bambu como uma ferramenta de libertação”, diz o mestre.
A sede do Cerbambu conta com móveis e espaços inteiros feitos de bambu. “Trabalhamos com os dois pontos, desde criar estruturas novas até fazer releitura de produtos que sejam de metal ou plástico. É importante demonstrar que existe esse design fora do sistema industrial”, afirma o professor.
A montagem é apenas a ponta final da edificação sustentável baseada no bambu. O projeto começa no cultivo, colheita, secagem e tratamento das fibras. A extração do amido também exige uma da série de cuidados para que o material seja utilizado na construção civil. Tudo isso com a preocupação de não se criar grandes lavouras nem desmatar para abrir áreas de plantio. “Se for para manter a lógica do agronegócio e da mineração, então não é uma revolução”, argumenta.
Para o mestre, o maior símbolo do sucesso, além das milhares de pessoas que aprenderam as técnicas ensinadas pelo Cerbambu, seria construir uma estação rodoviária ou de metrô utilizando bambu. Obras onde “milhares passam no dia a dia”, e não edifícios gigantescos.
O caminho alternativo ao concreto armado é essencial para as próximas décadas, indica Ventania. “O Museu da Amanhã [no Rio de Janeiro] foi uma obra monumental feita por um arquiteto espanhol, apenas com concreto e ferro. Chamam aquilo de amanhã. Que amanhã é esse?”, questiona.
TUDO SE ENCONTRA NO OCO
A história de Lúcio Ventania com a planta tem a ver com a sabedoria chinesa. Quando tinha 10 anos de idade, foi chamado para ser assistente do mestre bambuzeiro Lu. Por meio de oficinas, ele foi se encantando com a arte. “Fui escolhido pelo bambu. Fiquei tão encantado pelo cheiro, pelo barulho. Fiquei até doente. Lembro que tive uma febre danada, porque queria muito mexer com aquilo, ficava ansioso”, relembra.
Aprender a manusear os ramos foi essencial, mas o determinante mesmo foi quando ele entendeu os “nós” da planta. “O bambu foi considerado uma planta sagrada pelos chineses em 1.700 antes de Cristo por causa dos espaços ocos que existem entre o nó e o outro caule. Eles acreditavam que o ar que tem ali era o mais puro da Terra, já que nunca tocou em nenhum espaço externo. Por muito tempo, o bambu nem foi usado como produto cultural, mas em cerimônias religiosas”, ensina o mestre.
Lidar com a parte cheia de ar do bambu na arquitetura significa ter que encarar que a vida útil da construção pode ser um pouco menor do que seria utilizando-se materiais como concreto ou pedra. Seguindo as técnicas e o manejo correto, uma construção de bambu pode durar entre cinco e 20 anos.
“É preciso uma nova cultura para assimilar esse novo tempo de durabilidade das construções. Ele é mais suscetível às intempéries”, explica Ventania. Tal cultura passa pela criação de novas normas técnicas de construção. “Hoje em dia, são regras feitas para o ferro, para o concreto”, explica Lúcio. Para ele, a construção civil brasileira é “viciada” no concreto armado.
As implicações filosóficas do bambu vão além das lições chinesas sobre flexibilidade ou divindade. A planta ensina muito sobre como lidar com a “sociedade do cansaço” característica do século 21.
“O oco é o que nos faz humanos. Porque o ser humano que está sempre cheio de cultura, cheio de saber, cheio de trabalho, cheio de diplomas, não cabe mais nada nele. Mas, quando se espelha no bambu e encontra lugares ocos dentro de si, só aí pode aprender o novo e crescer”, ensina o mestre.