É hora de atualizar o olhar sobre o maior festival de criatividade do mundo

O que podemos esperar da agenda deste ano

Crédito: Fast Company Brasil

Babi Bono 6 minutos de leitura

Não fingirei naturalidade, será minha primeira vez em Cannes, presencialmente. Já passei pelas tais fichas, já fui apagada de outras que levaram prêmios – o que, durante muitos anos participando da indústria criativa, me fez até questionar o evento enquanto termômetro criativo. Termômetro para quem? Pensava.

Inegável que, com a descoberta de outros festivais, como South by Southwest (SXSW) e o Websummit, Cannes precisou rever seu lugar na pauta dos eventos de inovação para se adequar a um olhar mais contemporâneo e aplicável sobre criatividade. Prometi para mim mesma que só iria para Cannes se fizesse sentido estar lá, pensando sempre o que posso fazer ao hackear esses espaços, conectando as pautas globais com a nossa realidade local, principalmente àquelas que ficam à margem da discussão.

Enquanto mulher, de origem favelada, há quase 20 anos parte da indústria criativa, a naturalidade de estar de corpo presente nesses espaços passa longe. É puro desconforto, que vai desde o não domínio de outro idioma até as conexões com pessoas e temas em si. Tudo parece distante. Porém, quando esse corpo chega, outros chegam junto.

Cobrindo esses festivais de inovação nos últimos anos, percebi como cada um instrumentaliza sua presença nesses ambientes. Vou com a perspectiva do indivíduo, mas minha pauta é coletiva. É isso que vocês podem esperar da minha cobertura por aqui. Após o evento, o que pode resultar de atuação prática depois da conexão com esses saberes e pessoas será o foco.

A convite da Fast Company Brasil, cobrirei o festival como jornalista. Também vou como parte do grupo de executivos da Digital Favela que está indo para o evento. Junto o olhar jornalístico com o da profissional estrategista criativa para acompanhar o que estiver rolando por lá.

A que a criatividade proposta pelo Cannes Lions está conectada? Com qual reflexão? Qual debate queremos promover? Por onde essa criatividade irá nos pautar? São algumas das perguntas que pretendo responder – ou, no mínimo, trocar.

Iniciando o trabalho de casa, mergulhei na programação e a primeira constatação foi: deixei meu preconceito de lado. Há um termômetro muito interessante sobre criatividade e negócio, menos sobre o brand, mas sobre a atuação – e isso é muito novo para a perspectiva brasileira, ainda tão engessada nos formatos de mídia e nos números de um marketing que não fecha contas reais. É o lugar da propaganda no processo de transformação dos negócios (sir Martin Sorrell já vem falando sobre isso há tempos também).

Essa ideia não tem como existir se não passar por uma pauta clara de inclusão dos indivíduos e o mundo que queremos habitar. Seja ele recortado pelo avanço da tecnologia, seja pelo pulso da regeneração, quando falamos de sustentabilidade. Como diz a professora Erlana Castro, o festival deste ano “sugere outros tipos de experimentação criativa, da ordem do ativismo, da ordem do humano, das comunidades”.

Como costumo dizer por aí, estamos “sem tempo, irmão” para devaneios criativos não aplicados a uma realidade que grita por impacto. Isso fica claro já no termômetro da programação. Selecionei alguns termos e assuntos que permeiam a pauta do festival para ficarmos de olho. São eles:

CONEXÕES SIGNIFICATIVAS

Painéis que vão desde metaversos a IA generativa, passando pelo acesso aos corpos femininos enquanto estudo e por trilhas inteiras sobre China, África e favelas. Por que a indústria ainda está vacilando quando se trata de diversidade, equidade e inclusão? O que podemos fazer enquanto indivíduos para agir, como indústria e como influenciadores, e como vamos integrar de fato esforços de não estereotipar, mas agir como defensores?

COMUNICAÇÃO EQUITATIVA E CRIATIVIDADE INCLUSIVA

No painel “O futuro da inovação passa pela acessibilidade”, a conversa conecta o olhar para um mundo de um bilhão de pessoas vivendo com alguma deficiência. Como a criatividade, por meio das lentes do design acessível, pode ser uma ferramenta de inclusão?

NUTRIR MENTES ATÍPICAS 

Saúde mental é pauta recorrente nos festivais e, em Cannes, é tema de painéis que conectam criatividade à neurociência. Se pensarmos que muitas das ideias mais inovadoras vieram de quem tem de TDAH à dislexia, como nutrir e abrir espaços para essas mentes?

ATIVISTAS CORPORATIVOS

O tema aparece com força  em um painel que vai envolver a Kantar, um ativista climático e uma executiva de sustentabilidade. O papo gira em torno de como líderes de marketing têm hoje a responsabilidade de trazer para mesa o impulsionamento da agenda sobre sustentabilidade. A vertical 2030 também vem com força, aparecendo em festivais como SXSW e Websummit Lisboa.

CONFORTO NO FRACASSO
Na cultura dos cancelamentos, estamos prontos para não acertar sempre, porém, continuar tentando em vez de abandonar posicionamentos de marca porque “dá muito trabalho”? As conversas sobre “propósito” somam-se às de inovação, mas achar uma unanimidade dentro das pautas sociais e existenciais é muito difícil. As próprias comunidades se fragmentam nos discursos.

Quando a marca aceita encarar um viés dentro de uma conversa sobre gênero, por exemplo, ela estará deixando de abraçar outros. Com isso, como os criativos e marcas podem lidar com a ideia de que não é sobre “boas intenções”, mas sim cocriar de fato com as comunidades (envolvendo distintos olhares sobre um mesmo assunto) para, inclusive, estar cercado de suporte na hora que algo der errado. Como manter a consistência entre discursos e ações?

INVENÇÃO NA ERA DE REINVENÇÃO PERPÉTUA

O painel com o presidente da Mattel, Richard Dickson, vai abordar os movimentos para revigorar a Barbie, marca de bonecas número 1 do mundo, e colocar na mesa novamente a pauta propósito X lucro.

A INTERNET QUEBROU/ CONSTRUINDO A PRÓXIMA INTERAÇÃO DA INTERNET

Um dos painéis formado por executivos do Pinterest e por Michael Rico, fundador e diretor do laboratório de bem-star digital no Boston Children’s Hospital, trata do incômodo que atravessa todas as discussões contemporâneas dos eventos: a internet deveria nos conectar e inspirar e está nos dividindo e distraindo.

O tempo de tela cada vez mais alto em contrapartida ao nível de saúde mental, principalmente dos adolescentes – o mais baixo de todos os tempos – acende a luz vermelha para o papel criativo e educativo das campanhas.

Outro painel que abordará a perspectiva comportamental da internet é formado por Lego e Epic Games e mostra que as marcas estão se unindo para enfrentar as questões humanas do metaverso: “a internet como a conhecemos precisa ser reescrita, pois todos nós moldamos coletivamente esse futuro emocionante e divertido”.

Cannes precisou rever seu lugar na pauta dos eventos de inovação para se adequar a um olhar mais contemporâneo e aplicável sobre criatividade.

Ainda tem conversa sobre o hip-hop como ferramenta educacional; a Dove querendo falar sobre mudanças positivas para as mulheres chinesas (histori- camente atravessadas por questões comportamentais sobre seus corpos e emancipação feminina); a apresentação de um índice de pontuação LGBTQIAP+, com insights inéditos sobre a comunidade. 

E, claro, a presença do Brasil na pauta criativa. Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa) e Gilson Rodrigues (G10+favelas) trazem o tema da inovação pela perspectiva das favelas brasileiras.

As malas não estão prontas. Me sinto dentro do meme “não tenho nem roupa pra isso”, mas assunto não vai faltar.

No fundo, o festival deste ano, pela perspectiva que me cabe, provoca os profissionais de marketing e da indústria criativa a serem uma força para o bem em tempos de crescimento de polarizações e intolerâncias. É hora de construir marcas adequadas a uma economia digital, com aspecto fortíssimo na linguagem e narrativa sociais.

Vamos descobrir juntos, nos próximos dias, o que torna um criativo também um inovador.

Partiu, Cannes!

Confira cobertura Cannes Lions 2023!


SOBRE A AUTORA

Babi Bono é cria do Morro do São João (RJ), jornalista, publicitária e estrategista criativa. É fundadora da Lemme Content e Líder de ... saiba mais