Falta muito para mudar em relação a equidade de gênero

Mas, na indústria da comunicação, o modo como as mulheres líderes se relacionam já mudou, bastante

Crédito: Fast Company Brasil

Laura Florence 13 minutos de leitura

Vou fazer assim: vou contar essa história de frente para trás.

Começando pelo último acontecimento. Dia 20 de junho, em Cannes, durante o Festival Cannes Lions, 62 mulheres líderes da indústria da comunicação se reuniram no Hotel Carlton para se conectar, reencontrar e conhecer. Evento inédito promovido pela MORE GRLS e o TikTok Brazil. Entre as participantes havia líderes da criação, mulheres nas maiores cadeiras do marketing, vice-presidentes, manager directors e CEOs das agências.

Laura Florence

Um encontro cheio de conversas leves, abraços, palavras de reconhecimento umas para as outras. Teve até choro: uma criativa, com os olhos cheios de lágrimas, abraçando e agradecendo pelo Leão alcançado.

Agora voltando a fita, lá para os anos 1970 e 1980, quando a publicidade começou a ganhar força como um mercado potente, as poucas mulheres que habitavam esse ecossistema não gostavam de ser reconhecidas como mulheres, não formavam alianças, grupos ou qualquer outra coisa que as colocasse na categoria “feminina”.

Em muitos relatos, em confronto com a minha geração, elas dizem que não se sentiam diferentes. Era tudo igual.

A gente sabe que não era assim. A janela histórica nos permite avaliar que, nesse tempo, os abusos e a falta de oportunidades eram até piores. Mas reconhecer isso era inaceitável, as tornaria fracas e incompetentes. Veja o que conta Ana Cortat, vice-presidente de brand & connections strategy na @Soko.cx:

“Comecei na publicidade no final dos anos 1980 e o foco era ser a melhor entre homens. Por um longo tempo, olhei para eles sem ver diferença nenhuma, o que era uma grande mentira, e ouvindo que mulheres eram muito competitivas entre si, outra mentira. Não tínhamos redes de mulheres e isso foi o que mais vi mudar. Hoje vemos nossas diferenças, nos interessamos uma pela outra e nos apoiamos. Nos ouvimos, mentoramos, apoiamos e andamos juntas, movendo as estruturas”

Não consegui nenhum relato de mulheres de mais de 60 anos dessa época. Assim, andando algumas casas à frente, chega a minha geração. Mulheres de 40-50 anos que começaram nos anos 90.

No geral, fomos nos moldando com muita personalidade e respostas rápidas, como se estivéssemos o tempo todo portando o escudo protetor da Mulher Maravilha. A gente sabia que não era fácil sobreviver, mas no nosso kit de sobrevivência na selva do patriarcado não tinha a estratégia de formação da tribo – se defender em bando.

Aqui vão alguns relatos de criativas dessa geração. Com um parêntese para contexto: a criação ainda é o departamento com menor número de mulheres em toda indústria – 26% no geral e 25% na liderança.

Anna Karina Brockes Merel, diretora de criação e gerente sênior na Accenture

“Minha relação com as poucas mulheres que ‘existiam’ na época era de muita competitividade. Bom mesmo era ser próxima dos homens e, se possível, ser como eles.

Não tinha quase nenhum lugar para nós. Então, tínhamos que brigar, lutar para ocupar os poucos que existiam. Não dava para confiar muito em uma mulher naquela época. A não ser que ela estivesse em outra área.

Hoje (ufa!) a gente se reconhece. Se valoriza, se escuta, se ampara. Fica feliz quando uma mulher é promovida, quando ganha um prêmio, quando é reconhecida. Isso, hoje, não significa mais que ‘ela tirou o seu lugar’. Mas que ela vai abrir muitos outros para todas nos.”

Renata Leão, diretora executiva de criação da David

Quando comecei na propaganda, em 2000, as vagas para mulheres na criação eram ultralimitadas. A sensação que eu tinha era de que olhávamos umas para as outras sempre através de um filtro competitivo, menos empático. Éramos competidoras sempre pelas mesmas vagas, pelos mesmos micro espaços no departamento criativo das agências.

Hoje percebo que a comunidade criativa feminina ganhou força e vem crescendo. Porém, a métrica de sucesso ainda segue sendo indexada aos parâmetros de sempre. E, por conta do nosso gênero – e da ‘brodera- gem’ – ainda somos lembradas todos os dias que devemos nos esforçar muito, mas muito mais, só para ter o direito de frequentar esse espaço.

Me sinto mais acolhida hoje. Mas foi uma jornada longa e diária de questionamento do meu valor de contribuição criativa para chegar nesse ponto, já calejada, porém, animada em perceber o tanto de manas incríveis e talentosas que estão chegando com tudo e redesenhando o futuro da comunicação.”

Dani Ribeiro, diretora executiva de criação da Publicis Brasil.

“No começo da minha carreira, me achava especial por ser a única, ou quase a única, nos departamentos de criação. ‘Devo ser

muito talentosa mesmo, eles me deixaram entrar e até me elogiam de vez em quando’, pensava. Vim a Cannes pela primeira vez como Young Creative em 2002, ocupando com um certo orgulho o lugar de única mulher da delegação brasileira daquele ano.

Em 2023, me enche de orgulho contar que, só em cargos de liderança, somos pelo menos 60 criativas brasileiras. Demorei a entender que, enquanto fosse só eu ou fossemos poucas, seríamos sempre o elo mais fraco e descartável.”

Luciana Cardoso, diretora executiva de criação da Crispin

“É muito bonito ver que hoje as mulheres podem usar seus superpoderes e trazer suas visões específicas para o trabalho sem medo. Antes era ‘sou mulher, mas sou legal’. Já me peguei coçando meu saco imaginário para pertencer, ser ‘um dos caras’, e, assim, conseguir navegar no mercado. Era agressivo e eu nem percebia.”

.

Yuri Mussoly, head de criação para a América Latina do TikTok

“Estou na faixa dos 39, mas reforçando aqui: por muito tempo fui a única na criação e me senti obrigada a corresponder a um modo de agir com o qual eu não me identificava para que me levassem a sério. Cortava cabelo super curto, usava roupas largas. Tinha medo de soar feminina e de ser (ainda mais) excluída.

Me tratavam como ‘chaveirinho’ e ‘café com leite’. Fui tratada como júnior por muitos anos sem ser. Me davam as migalhas de jobs. Era chamada para brainstorming de Cannes, mas nunca, NUNCA nessa época, entrei em uma ficha técnica.

Com outras mulheres, o clima era de competição. Aprendíamos que só tinha lugar para uma de nós. Então, quem fosse ‘amiga dos caras’ tinha prioridade.

A única mulher que acreditou em mim, quando eu já era uma sênior desiludida querendo abandonar tudo, foi a Andrea Siqueira (jamais esquecerei). Hoje sei que tenho ao menos 131 mulheres com quem posso contar. As mulheres do nosso grupo de liderança da MORE GRLS. Isso é muito f*da.”

Daniella Reis, diretora executiva de criação da Oliver

“Meu relato é menos de competitividade e mais de desânimo em pensar que tinha escolhido a profissão errada porque não acreditava que teria espaço para mim. Eram poucas, muito poucas. Tive a sorte de ter duas chefes mulheres, o que era raro.

Mas esse contexto me fazia pensar que tinha que ter um plano B, porque ali teria poucas chances. Me sentia uma em um milhão e sabia que, para me manter viva ali, teria que trabalhar muito, abrir mão de muitas coisas e, inclusive, parecer que não tinha vida fora dali. Ter uma família um dia, filhos, nem pensar, seria assinar a carta de demissão!

Passei anos pensando que o quanto eu conseguisse sobreviver naquele mundo era lucro, porque tinha data para acabar.

Não arrumei um plano B, sigo sobrevivendo e correndo atrás do que mais gosto de fazer e enfrentando salas inteiras lotadas de homens. Mas acho que hoje as meninas conseguem ver muitas profissionais, se sentem mais parte, conseguem ver mais lideranças femininas, mulheres se destacando, Elas podem, com isso, se inspirar e acreditar mais em si mesmas.”

Gabriela Rodrigues, vice-presidente de impacto da Soko

“Por ser uma mulher lésbica andrógina, minha relação com as mulheres começou de uma forma conturbada na indústria. Muitas esperavam que eu performasse uma feminilidade que não me pertence – e que, ainda assim, não me faz menos mulher.

Com o tempo e com o avanço das pautas sobre raça e orientação sexual, hoje mais mulheres brancas, cis, hétero e que performam tipos diferentes de feminilidade têm entendido que estender o imaginário do que é ser mulher é fundamental para todas nós e favorecerá toda a discussão da pauta, independentemente do recorte que cada uma delas ocupa.”

A LUTA CONTINUA

Bom, vamos avançar mais uns capítulos nessa história. Em 2018, junto com Camila Moletta, começamos a MORE GRLS. A primeira iniciativa foi mapear a nossa comunidade por meio de uma plataforma de talentos.

Sem muita consciência na época, fizemos o que as novas gerações de mulheres já entenderam. É preciso formar comunidades e agir no coletivo. Não apenas para conquistar direitos, mas para sobreviver em um ambiente que ainda hoje não sorri para a gente.

Falta muito para que todas se sintam igualmente confortáveis. Mas existe o grupo. Isso era impossível cinco anos atrás.

Hoje temos mais de cinco mil nomes nessa plataforma (que volta ao ar logo mais), além de um grupo de WhatsApp com mais de 131 mulheres em cargos de liderança, no qual dividimos relatos, experiências, desabafos e de onde, em apenas uma hora, consegui todos esses depoimentos. Olha a força da rede! Não escrevi esse artigo sozinha.

Hoje temos no grupo mulheres pretas, brancas, cis, lésbicas, hetero e trans trazendo suas perspectivas, bem diferentes. Falta muito ainda para que todas no grupo se sintam igualmente confortáveis. Mas existe o grupo. Isso era impossível cinco anos atrás.

Mayara Moreira, líder de criação na MOOC

“Mesmo estando inserida em um cenário publicitário ‘mais acolhedor’, estou com 33 anos e sempre foi difícil ser mulher e preta na publicidade. Trabalhei com poucas mulheres pares e chefes, pouquíssimas. A maioria eram homens.

Já passei por situações de descrédito: uma opinião era recebida diferente quando vinha de um criativo. Quando era eu quem fazia, era pouquíssimo ouvida e valorizada. Já fui a única pessoa preta da agência e meu chefe – homem, branco, hetero, cis – achava que era um cara muito legal por dar oportunidade para uma pessoa preta, porque ele entendia o que eu passava (palavras dele mesmo).

Sempre foi sobre batalhar duas vezes mais. Ser mulher na publicidade já é bem difícil. Ser mulher preta é difícil em dobro. Ainda sinto muita bolha na publicidade. Ou você está inserida nela e, assim, tem uma espécie de escudo, ou precisa encontrar um caminho seguro para trilhar.

Claro que tem muita gente massa e disposta a se ajudar e a agregar, e não a competir e excluir. Espero que essas pessoas se multipliquem cada vez mais 🙂

Gabriela Guerra, redatora sênior na McCann

Tenho 35 anos. Comecei na Almap com 23, em 2011. Acho que dei muita sorte, porque tive Luciana Haguiara e Lelê Pereira como minhas diretoras de criação nos cinco anos que fiquei lá.

Não tinha competição, mas acho que porque não tinha com quem competir naquela criação entupida de homens. As outras criativas eram Sophie Schonburg e Ana Carolina Reis – já naquela época eu fazia piada que ‘escovava os dentes com as estrelas’ depois do almoço.

De modo geral, acho que fui muito infantilizada, mas pelos homens. Eu era muito nova, morta de vergonha de tudo. Toda vez que abria a boca era um evento por causa do sotaque forte.

Quando finalmente fui trabalhar em uma criação com mais mulheres nas mesmas posições que eu, já era 2016. Uma delas virou minha melhor amiga da vida. As duas éramos redatoras, mas fazíamos quase tudo juntas. Com o resto das meninas, tínhamos um grupo chamado Formation da Criação para nos articularmos e lidar com as m*rdas que rolavam.”

Mel Campos, designer estratégica em inovação social na área de business innovation na Natura

Tenho falado muito sobre como a criatividade está no lugar de sobrevivência para mim. Passei parte da minha vida em orfanato e mudando de casa, bairros e escolas, e sobre como ser criativa para lidar com as diversidades.

A competição feminina é latente desde esses lugares, então, me inserir no mercado criativo, foi – e ainda é – exaustivo. Como mulher, preta, nordestina, favelada, mãe…

Sai da faculdade de design com 30 anos e sempre reforço como foi importante ver Dandara Almeida em uma palestra, porque a maioria das referências estava na academia e não no mercado. Vê-la falando e as destacando me deu esperança. Mas a luta que é uma pessoa no meu recorte… Fugi de agências e busquei o lugar de fomento e autônoma, para doer menos.

Sobre as relações, vejo com felicidade as mudanças, mas ainda é uma bolha difícil de furar. Mesmo tendo acesso a vocês [do grupo], por exemplo, não tenho relacionamento próximo com nenhuma, embora tente. Porque as diferenças que nos conectam são as mesmas que nos distanciam. Oportunidades, privilégios, lugares, assuntos.

Sinto que ainda precisaremos nos abrir mais às diferenças reais de lugar de partida e buscar caminhos para criar um ambiente menos competitivo e mais colaborativo entre nós. Isso se dá porque cada uma está vivendo batalhas silenciosas, e o grito ecoa pouco em meio à velocidade.”

Jessica Gomes, head de creative shop mindmarketing da Meta para a América Latina
“Não há como falar sobre minha carreira sem falar de mulheres. Acabo de completar 29 anos e, no início, empresas como 65/10, MESA e Think Olga, já estavam dando os primeiros passos para mudar tudo.

Foi um projeto de uma mulher, Jessica Walsh – liderado no Brasil pela Thaís Fabris – que me abriu os olhos para enxergar uma publicidade da qual eu queria, sim, fazer parte. Assim, me tornei anfitriã da Ladies, Wine & Design em Minas Gerais. Ouvi muitas vezes que esses projetos paralelos não iam me levar a nada. Erro deles.

De encontros sobre carreira a um documentário que ajudou a lançar a candidatura de uma mulher trans ao Senado, acabamos reunindo mais de 400 mulheres da economia criativa em uma rede poderosa para impulsionar carreiras e negócios.

E foi em reconhecimento a esse trabalho que fui parar em Cannes em 2018, no See It Be It. A primeira fora do eixo Rio-Sao Paulo. A primeira negra brasileira. A primeira da minha família a sair do país.

Depois disso, desembarquei em São Paulo para descobrir em Veronica Dudiman, Raíssa Santos, Dani Mattos, Joana Mendes – e tantas outras que sabem quem são – o acolhimento para sentir que aqui também poderia ser meu lugar.

Não é fácil: machismo e racismo me atravessam por onde vou. Exaustivo e cruel. E ainda temos muitos passos pela frente. Mas faz um tempo que sei que não vou só. Crio em bando. Desde os meus primeiros passos, vou trilhando uma carreira que conjugo no feminino, no plural. E que assim seja!”

Com certeza, a MORE GRLS não é a única influência desse movimento, mas foi a primeira iniciativa que se destacou levando essa questão para mesas de board. Como será a relação das mulheres nas próximas gerações? Eu não sei. Mas me arrisco numa previsão: elas estarão juntas.


SOBRE A AUTORA

Laura Florence é diretora executiva de criação da HavasH&Y e cofundadora da MORE GRLS. saiba mais