Papo reto com Dani Mattos, da Indique uma Preta

"Queremos ser a última geração de primeiros", diz a sócia da Indique uma Preta sobre a participação de pessoas negras no festival

Babi Bono (esq.), Dani Mattos e Adrianne Smith

Babi Bono 5 minutos de leitura

Nesta entrevista para a Fast Company Brasil, a sócia e co-fundadora da Indique uma Preta conta sobre a Inkwell, espaço de emancipação criativa, conexões e diversidade que desloca o olhar de Cannes para além das premiações.

FC Brasil – O que é a iniciativa da Praia Inkwell?

Dani Mattos – Inkwell Beach Cannes é uma homenagem histórica à infame praia de Martha ‘s Vineyard [em Cape Cod, no nordeste dos Estados Unidos]. Começou como uma iniciativa em 2019, para reunir em um espaço proprietário as perspectivas e contribuições dos criativos pertencentes a grupos historicamente minorizados. 

Puxada pelo Cannes Can Diversity Collective (CC:DC), criado pela Adrianne Smith desde 2017, em resposta à falta de diversidade do festival, o espaço hoje é visto como uma referência dentro do Cannes Lions e estimula uma forte criação de comunidade criativa internacional, conexões e trocas. 

FC Brasil – É comum ouvir relatos de pessoas que são minorizadas de sentir receio de estar em um espaço como esse. É sua primeira vez em Cannes e você vem como embaixadora dessa iniciativa potente. Ainda assim, sentiu algo parecido?

Dani Mattos – Sempre tive muito medo de vir para Cannes. A gente acha que não vai saber se vestir, comer, andar, que é tudo muito chique. Me inscrevi para vir há uns três anos, com o Indique uma Preta e porque cuidava das iniciativas de diversidade e inclusão da Mutato. Cheguei a passar, mas veio a pandemia em 2020. Como diz o Emicida, “bem na nossa vez”.

É importante ter gente como a gente aqui porque depois conseguimos expandir esse acesso para a nossa comunidade.

A gente faz o nosso corre para vir, que é completamente diferente de quem já performa nesses espaços e nesses códigos há muito tempo. Porém, vim na hora certa porque estar junto com esse programa, que é uma referência dentro do festival, me desloca inclusive do que é esse lugar de performance em relação ao prêmio, para um lugar de impacto. Nunca fui tão mimada, tão bem tratada. 

FC Brasil – Fale mais sobre essa questão de performar novos códigos. Você acredita que é possível sair do festival das ideias para chegar ao “festival das ações”?

Dani Mattos – Esse programa tem sido uma referência tão grande dentro do festival que as pessoas param a gente por aí. É muito bacana. É uma comunidade que se forma depois disso e são contatos que ficam para a vida, que fortalecem as nossas conexões.  

Tem gente que vem há muitos anos, bancada pela agência etc. Chegamos com códigos diferentes porque viemos, na maioria, fazendo um esforço absurdo para estar aqui. São pessoas que, inclusive, não estão afim de performar os mesmos códigos.

Estamos aqui, claro, para fazer networking, para conversar com as pessoas porque isso é importante. Temos que fazer reuniões, aparecer, ir em entrevistas. Mas vamos voltar para o Brasil e tudo o que acontecer em Cannes vai ter um impacto muito importante na vida de outras pessoas.

Os patrocinadores importantes, que estão apoiando esse programa, já entendem que estão investindo nos futuros líderes da indústria.

Alguns vão usar os acessos que estão tendo aqui para seus objetivos individuais. É importante ter gente como a gente aqui porque depois conseguimos expandir esse acesso para a nossa comunidade. Seja dividindo o que aprendemos, seja falando em programas que se correlacionam.

Sempre tive uma perspectiva mais crítica sobre essa coisa de ganhar prêmios. Sabemos que tem muitas campanhas focadas em ganhar prêmios e não em mudar a vida das pessoas. Eu tinha receio de vir, achando que esse tipo de pensamento seria reproduzido em tudo. Vir pela Inkwell e estar com as pessoas com quem vim fez toda diferença.

Não falei sobre prêmios. Como é um programa focado em dar oportunidade e desenvolver pessoas, falamos sobre criatividade, conexões reais, comunidade. É sobre deixar a porta aberta. Esse é o código. Você veio e vai voltar para sua comunidade – e vai estender, de alguma forma, esse acesso que está tendo aqui. 

FC Brasil – Fica clara a importância de a indústria criativa abraçar a missão e incentivar financeiramente a vinda das pessoas que trazem diversidade de pautas. Se a agência está ganhando prêmio em cima da temática de diversidade, se o discurso da marca está comprometido com ESG, se os veículos precisam atualizar a narrativa, apostar na vinda de quem pode retratar essa realidade é fundamental. Por que ainda é tão difícil que isso aconteça? 

Dani Mattos – Os patrocinadores importantes, que estão apoiando esse programa e todas essas agendas exclusivas, já entendem que estão investindo nos futuros líderes da indústria. Consigo fazer uma conexão muito clara com o movimento que as agências têm feito no Brasil para contratar gente preta, patrocinando este evento.

Precisamos trazer gente preta. Sou a primeira mulher negra brasileira a vir e a tendência é não voltar para trás. Vou no Martinez [hotel Martinez, ponto de encontro tradicional dos participantes do festival] à noite e quero conversar com as minhas pessoas, com quem vai ter uma agenda parecida com a minha depois disso. Temos repetido: queremos ser a última geração de primeiros. 

FC Brasil – Como voltar e fazer a conexão com a indústria?

Dani Mattos – Quanto mais novas as mentes, quanto mais pessoas com novos olhares e novas perspectivas, mais vamos

Sou a primeira mulher negra brasileira a vir e a tendência é não voltar para trás.

conseguir garantir um avanço coletivo das conquistas que foram endereçadas aqui hoje. Perifa Lions, Indique uma Preta e tantos outros estão em Cannes pela primeira vez e a sensação é de muito engajamento, porque estamos vivenciando o que é possível. 

Não tiro a razão de quem já desacredita que algo pode mudar, porque há muitos anos esse é um festival sobre premiação. Só que o evento não é só isso. A gente tem que conseguir entender e dar a perspectiva de que existem muitas outras camadas, assim como existem muitas camadas da criatividade também, porque criatividade não é só publicidade. É conversar com uma poeta que é roteirista de filme, como conheci aqui, por exemplo.

Quanto mais conseguirmos expandir nossa perspectiva e contemplar a multidisciplinaridade da criatividade, mais vamos conseguir tangibilizar as oportunidades de outras pessoas estarem aqui. Se eu entender que publicidade não é só um filme para ganhar prêmio, podemos trazer cantores de periferia, poetas, artistas, pintores. É sobre arte. Criatividade é sobre arte.  


SOBRE A AUTORA

Babi Bono é cria do Morro do São João (RJ), jornalista, publicitária e estrategista criativa. É fundadora da Lemme Content e Líder de ... saiba mais