10 anos de Glass Lions: o Leão da Mudança

A presidente do Júri Glass Lions 2024, Cindy Gallop, fala sobre os desafios para alcançar a igualdade de gênero em uma indústria difícil de se transformar

Crédito: Mario Guti/ iStock

Erlana Castro 6 minutos de leitura

O Glass Lions é a categoria do Festival de Criatividade de Cannes que premia ideias que desafiam a discriminação e o estereótipo de gênero na publicidade. Ou seja, criatividade que celebra a diversidade e transforma a nossa cultura, empoderando mulheres e ajudando a reduzir o gap de gênero em todo o mundo.

A premiação faz uma referência direta à expressão “glass ceiling”, ou teto de vidro – uma barreira invisível que impede particularmente as mulheres e minorias de alcançar posições de liderança na sociedade, independentemente de suas qualificações e realizações.

Segundo o “Global Gender Gap Report 2024”, do Fórum Econômico Mundial, considerando recentes conquistas e a velocidade das mudanças atuais, ainda levaríamos 134 anos para alcançar a equidade de gênero em nossa sociedade. Sim, a estrada é longa e a evolução é muito, muito lenta.

Portanto, se de um lado a publicidade tem o potencial de impulsionar a transformação social, influenciando atitudes, comportamentos e normas, do outro o Festival de Cannes tem o papel de inspirar e direcionar a indústria por meio das categorias que estabelece e das premiações que atribui.

Crédito: Cannes Lions

Este ano, o Glass Lions completa 10 anos. Quem fez essa provocação à organização do festival foi Sheryl Sandberg, bilionária e ex-diretora fundadora da Meta. A provocação aconteceu  simultaneamente ao lançamento de seu livro "Faça Acontecer - Mulheres, Trabalho e a Vontade de Liderar", de 2014.

A primeira edição do Glass Lions teve Cindy Gallop como presidente do júri – titã da publicidade, uma das primeiras mulheres a liderar uma rede global de agências, a BBH (Bartle Bogle Hegarty).

Cindy, que também passou de publicitária a ativista na luta por equidade de gênero e por um mundo sexualmente responsável, este ano volta como presidente do júri para celebrar os 10 anos do Glass Lions.

Nesta entrevista exclusiva à Fast Company Brasil, ela destaca o progresso ao longo desses anos, mas também os desafios para alcançar a igualdade de gênero em uma indústria difícil de se transformar. 

Fast Company – Qual a sua avaliação sobre esses 10 anos de Glass Lions e como estamos, em 2024, na questão da equidade de gênero na publicidade?

Cindy Gallop – Em 2014 eu disse que, em 10 anos, o Glass Lions não deveria mais existir. Disse isso porque essa era a mudança que queria ver na nossa sociedade. Obviamente estamos aqui, 10 anos depois, e precisamos do Glass Lions mais do que nunca. Isso é uma vergonha.

Por outro lado, hoje há uma compreensão muito melhor dentro de nossa indústria sobre como a desigualdade de gênero é sistêmica, endêmica e global. Isso é uma coisa muito boa porque agora as pessoas entendem que a opressão das mulheres e meninas é um fato em todo o mundo e que, para erradicá-la, leva muito trabalho, esforço, e, claro, muita criatividade.

Na minha opinião, o Glass Lions continua sendo importante e está na direção certa.

Fast Company – Na coletiva de imprensa, você citou um episódio constrangedor vivido pelo júri e que representa bem a distância entre discurso e prática. Poderia falar sobre isso?

Cindy Gallop – Uma das grandes diferenças deste ano em relação há 10 anos é que antes avaliávamos apenas os cases para julgar os vencedores. Em 2024, o Cannes Lions introduziu o sistema de apresentações ao vivo dos trabalhos em shortlist – que, a propósito, qualquer participante inscrito no festival pode assistir.

Isso foi um divisor de águas, a oportunidade de conhecer o case diretamente da fonte e ter uma melhor noção de sua autenticidade a partir da maneira como as pessoas nos contam suas histórias.

Crédito: Cannes Lions

Por outro lado, em uma das apresentações ao vivo, embora estivessem sendo apresentadas ideias maravilhosas para resolver a desigualdade de gênero, na dinâmica entre uma apresentadora e um apresentador, o homem continuamente projetava-se fisicamente na frente da mulher e interrompia sua fala. Isso foi muito dissonante e mostrou que a indústria ainda tem um longo caminho a percorrer.

Decidimos não deixar que esse episódio interferisse no julgamento da ideia apresentada. No entanto, fomos unânimes em querer dar esse feedback, pois acreditamos que esses profissionais são líderes atuantes e estão em posição de fazer essa mudança acontecer.

Seria importante que, nesse contexto do Glass Lions, essas pessoas aproveitassem a oportunidade de ouvir, entender, aprender e mudar. Então, essa vivência foi um ponto alto do processo este ano e eu me sinto muito grata. Grata e encorajada.

Fast Company – Este ano o Grand Prix do Glass Lions foi para o case da Unilever Cingapura, "Transition Body Lotion", da Vaseline. O que gostaria de ressaltar sobre o case?

Cindy Gallop – O Glass é a categoria onde você tem liberdade para exercer um cinismo extremo. Interrogamos cada projeto inscrito, especialmente sobre sua autenticidade e integridade. Se a marca proponente tinha uma razão muito boa para estar propondo isso e se tinha compromisso genuíno com a causa no longo prazo, em termos de impacto e eficácia.

Quando a ideia do produto se encaixa perfeitamente no propósito da marca, você simplesmente tem que fazer acontecer. O Transition Body Lotion é uma demonstração fantástica de como promover a mudança social é um bom negócio.

E, muito importante, o P&D foi absolutamente desenvolvido e co-criado com a comunidade trans, o que gerou um produto não só super eficaz em resolver um problema real, mas também fez a comunidade se sentir vista, ouvida e incluída. Por essas razões, o júri do Glass Lion não hesitou em premiar por unanimidade o case com o Grand Prix Glass Lions 2024.

Fast Company – O que mais você ressaltaria da experiência deste ano?

Cindy Gallop – Nosso júri era composto por nove mulheres e um homem. Tínhamos representação queer, representação trans, representação PCD, representação de mãe com bebê recém-nascido (a brasileira Raphaella Martins). O que resultou disso foi um júri de mente aberta, disposto a ouvir o que cada pessoa tinha a dizer em termos de suas perspectivas individuais.

Recebemos a visita do grupo de mulheres participantes do programa See it be it. São jovens mulheres de todo o mundo trazidas ao festival para assistir às premiações e palestras, receber mentorias especiais e participar de trocas com os jurados.

hoje há uma compreensão muito melhor na indústria sobre como a desigualdade de gênero é sistêmica, endêmica e global.

O programa, que também está comemorando seu 10º aniversário, é baseado na ideia de que você não pode ser o que você não pode ver. Isso se aplica especialmente às mulheres em nosso setor. Durante a visita, elas nos fizeram perguntas desafiadoras sobre o papel das mulheres na indústria e o que esperar para o futuro.

Segundo as mulheres do See it be it, éramos a única sala de júri em que se sentiram bem-vindas e identificadas. As outras salas as assustaram, mas nós lhes demos esperança. E elas nos deram esperança também.

Hoje vejo muitas pessoas desafiando o antigo modelo da indústria. Então me sinto muito encorajada de que, em 10 anos, veremos ainda mais mudanças para o bem.

Fast Company – Esperemos que o Glass Lions não precise mais existir em 10 anos.

Cindy Gallop – Isso sim seria maravilhoso.


SOBRE A AUTORA

Erlana Castro é especialista em estratégia criativa, pesquisadora independente, professora da FDC e coautora do Radar da Antifragilida... saiba mais