Além dos Leões: como reforçar o papel da marca na transformação da sociedade

Mais do que campanhas premiadas, iniciativas como “Respeita Meu Capelo” mostram como o compromisso com a inclusão aponta caminhos para uma publicidade que transforma

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Marcela de Masi 4 minutos de leitura

Em um cenário no qual a publicidade é cada vez mais cobrada por responsabilidade, escuta ativa e impacto real, surge um novo tipo de protagonismo: o das marcas que escolhem agir para além da retórica.

Os palcos internacionais celebram campanhas de forte apelo social, onde ações enraizadas nos territórios – aquelas que constroem vínculos genuínos com as comunidades e geram legados consistentes –  têm ganhado força.

Exemplo disso é o projeto "Respeita Meu Capelo", da Vult, que inspirou um projeto de lei aprovado em Salvador e exige o uso de capelos inclusivos em formatura da rede municipal. 

Existe algo profundamente simbólico em um capelo, o chapéu usado por formandos nas formaturas: ele é mais do que um acessório, é a materialização de uma conquista, o ponto final de uma trajetória marcada por esforço, persistência e superação. Mas e quando ele exclui justamente aqueles que mais precisaram lutar para chegar até ali?

Foi com essa inquietação que a iniciativa da Vult desafiou o padrão tradicional dos capelos acadêmicos, criando versões que acolhem cabelos afro, crespos, cacheados, volumosos, com tranças ou dreads.

Junto à Dendezeiro, a marca do Grupo Boticário idealizou e distribuiu unidades nas formaturas da Universidade Zumbi dos Palmares e da Universidade Federal do Sul da Bahia, além de liberar os moldes para que qualquer instituição possa aderir.

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O gesto, aparentemente simples, se revelou potente e foi capaz de inspirar um projeto de lei em Salvador, cidade com a maior população negra fora da África, além de levar um Leão de Bronze no Cannes Lions este ano, na categoria Glass – The Lion for Change, voltada a projetos com impacto social profundo.

Uma campanha que virou política pública, a partir de um acessório que virou símbolo de reparação. E que vem angariando cada vez mais reconhecimentos: em 2024, o projeto conquistou outros leões no Festival de Cannes: Prata na categoria de PR (Brand Voice & Strategic Storytelling) e Bronze em Brand Experience & Activation Lions (Social Behaviour & Cultural Insight).

EDUCAÇÃO COMO FERRAMENTA

Esse papel social ocupado pela marca é reforçado em diversos outros projetos, como o 220 Vults, que tem objetivo de capacitar gratuitamente mulheres em situação de vulnerabilidade social para que se tornem profissionais do segmento da beleza.

Com o programa, as participantes aumentam, em média, 45% a renda de suas famílias, o que nos faz experimentar, na prática, a missão de levar a beleza como vetor para a independência financeira e autonomia feminina.

Para avançar ainda mais nessa jornada de emancipação, em 2024 inserimos no curso alguns módulos para ampliação dos conhecimentos sobre a violência de gênero. A ideia é usar a educação como ferramenta para que as mulheres consigam identificar situações de violência, conheçam os ciclos e saibam como procurar ajuda.

Mas, no meu ponto de vista, o mais relevante não é o case isolado, e sim o que ele revela sobre o lugar que as marcas precisam ocupar no mundo de hoje.

Se temos plataformas, audiência e influência, temos também os deveres e ônus que acompanham esse bônus.

Durante muito tempo, o mercado publicitário tratou o compromisso com a inclusão como um valor agregado. Um “algo a mais”, ativado pontualmente em datas específicas ou discursos de ocasião.

Se existe um recado claro por trás do reconhecimento internacional de um projeto como esse, é o de que não há mais espaço para marcas que apenas vendem produtos. Os consumidores esperam delas coerência, coragem e contribuição real para a sociedade.  

Não é mais esperado que as marcas contem as histórias, é preciso participar delas. O que fazemos, e o quanto isso impacta positivamente a vida das pessoas, vale mais do que qualquer promessa de campanha.

Afinal, em meio ao turbilhão de estímulos que a era do digital impõe, acredito que é dessa forma que delimitamos territórios, conquistamos a confiança e lembrança do cliente, genuinamente.  

O PAPEL DAS MARCAS

Isso, para mim, é o branding na sua forma mais elevada; quando conseguimos que a marca deixe de ser uma vitrine para se tornar espelho, refletindo as dores, potências e demandas da sociedade e se posicionando com responsabilidade diante delas.

Esse papel não pode ser terceirizado. Se temos plataformas, audiência e influência, temos também os deveres e ônus que acompanham esse bônus, já que não basta comunicar diversidade, é preciso estruturar ações de inclusão, que amplifiquem vozes e abram caminhos. 

O impacto real acontece quando deixamos de olhar para os consumidores como segmentos e passamos a vê-los como sujeitos inteiros, com histórias, identidades e direitos.

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Como marcas, temos o privilégio e a obrigação de ajudar a reescrever os rituais da cultura. Isso significa questionar padrões, incomodar confortos e propor novos símbolos. Um capelo que respeita o cabelo de quem o usa pode parecer pequeno, mas, em um país com desafios históricos quando falamos de equidade de oportunidades, isso é muito potente.

Que mais marcas tenham a ousadia de fugir do roteiro, com ideias que ultrapassem o papel e ocupem o espaço público, promovendo a transformação por meio da escuta ativa de problemas reais que enfrentamos como sociedade. Que mais campanhas ganhem o mundo, não apenas como peças criativas merecedoras de “Leões”, mas como agentes de mudança.

Se a marca tem força, que ela também a use para transformar.


SOBRE A AUTORA

Marcela de Masi é diretora-executiva de branding e comunicação do Grupo Boticário. saiba mais