Precisamos de novas perguntas. E o mercado criativo já começou a formulá-las
Os GPs do Cannes Lions 2025 mostram que a criatividade virou a chave: deixou de responder briefings e passou a reescrevê-los

O Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions 2025 entra em sua reta final e, até aqui, o Brasil já soma 96 Leões de ouro, prata e bronze e quatro Grand Prix.
Os prêmios continuam a ser contados, celebrados, exibidos. Mas, entre um troféu e outro, o que realmente se revela é uma contagem diferente: a de sinais, padrões, inquietações. Porque por trás dos trabalhos mais reconhecidos, há algo em comum: não apenas boas ideias, mas marcas que se dispuseram a fazer perguntas novas, mais difíceis, mais fundamentais.
O cenário é marcado por ruídos. A inteligência artificial domina as conversas, seja para o lado hiperotimista, seja para o lado pessimista.
Enquanto isso, a pesquisa Trust Barometer, da Edelman, apresentada durante o evento, aponta para um público mais resistente a discursos político-ideológicos das marcas. Soma-se a isso uma onda global anti-woke, pressões políticas por neutralidade e o risco de parecer oportunista.
Ainda assim, os trabalhos mais relevantes até agora mostram o contrário: que o problema não está no propósito, mas no modo como ele é tratado.
Como aponta a especialista em ESG, professora e autora. Erlana Castro, a virada está na pergunta, e não em uma exploratória de respostas criativas rasas que não resolvem nada. A equação criativa mudou e ficou mais complexa. E é aí que mora o desafio, e a oportunidade.

Nesse sentido, o festival Cannes Lions também mostra uma parte do caminho. Em apresentação, sir John Hegarty (o H da rede de agências de publicidade BBH) foi direto: “grandes empresas se tornaram operacionais, não mais inspiradoras. O que falta é filosofia”.
A provocação encontra eco em uma série de campanhas premiadas, que não apenas vendem ideias, mas se perguntam por que fazem o que fazem e o que isso transforma. São marcas que voltam à origem para buscar sentido. E que, ao fazer isso, formulam um novo tipo de pergunta.
VOLTAR À ORIGEM É O NOVO CAMINHO PARA INOVAR
Durante sua palestra, Marc Pritchard, responsável pela construção de marcas da P&G, defendeu que a criatividade de verdade começa com duas obsessões: conhecer profundamente o consumidor e reconhecer a essência da própria marca. Os frutos estão nas raízes. Voltar à origem da marca é o caminho para ideias duradouras.
o novo briefing das marcas é regenerar e lucrar ao mesmo tempo.
É isso que vemos em campanhas como a da AXA, que amplia sua proposta de valor original (proteção) para um novo território (violência doméstica). Ou a da DM9 para a Consul, marca que, ao completar 75 anos, não pergunta como vender mais e ganhar visibilidade, mas como ser útil e relevante para metade dos lares brasileiros e assim vender mais e ganhar visibilidade.
Essa volta ao ponto de partida do negócio, voltando para o contrato com a sociedade, não é nostálgica. É estratégica.
É POSSÍVEL RESOLVER DESIGUALDADE COM DADOS?
Na categoria Creative Data, o Brasil conquistou o grand prix com o case "Efficient Way to Pay", da DM9 para a Consul. Em vez de criar uma campanha sobre eficiência energética, a marca criou um modelo de negócio que permite a troca de geladeiras antigas por novas com base na economia projetada na conta de luz. O dado é real. O impacto também.
Não é uma ideia só para falar sobre economia de energia. É uma nova forma de vender, disse a jurada Camila Nakagawa. É transformação concreta, completou Tina Allan, presidente do júri.
Como pontua Erlana Castro, o novo briefing das marcas é regenerar e lucrar ao mesmo tempo. Criar valor para seus stakeholders e para a sociedade, e capturar valor extraordinário de volta. “A criatividade humana é a fonte de energia para tudo isso. E ela é renovável, inesgotável, surpreendente e muito potente”, diz Erlana.
COMO PROTEGER AS PESSOAS
Outro exemplo claro de sistema, e não só storytelling, é o case da AXA, na França. A seguradora incluiu em seus contratos uma cláusula que cobre violência doméstica: realocação imediata, apoio psicológico e suporte legal para vítimas.
É simples, minimalista, mas de impacto poderoso, disse Gaëtan du Peloux, presidente do júri de Direct. A comunicação fala de ser humano para ser humano.
Mais do que proteger casas, a AXA passou a proteger vidas e também o futuro do próprio negócio. E se as marcas pudessem interferir diretamente em estruturas de risco e vulnerabilidade de nossa sociedade?
Por exemplo, a campanha da MRV, que ganhou Leão de Bronze na categoria de Eficiência Criativa, transforma os espaços de construção de obras em escolas para alfabetização de trabalhadores da construção civil.
COMO TRANSFORMAR OBRIGAÇÕES EM DESEJO COLETIVO
Na Índia, a evasão no sistema ferroviário beira os 41%. O case "Lucky Yatra" transforma cada bilhete em uma loteria diária. Resultado: pagar a passagem virou um ato desejado, lúdico, culturalmente valorizado.
A pergunta aqui muda completamente o foco da criatividade. Como transformar obrigações cívicas em experiências coletivas prazerosas?
A marca não está só resolvendo um problema. Está mudando o comportamento da população com base em jogo, desejo e repetição. E isso, sim, é estrutura.
E SE A IA SERVISSE MAIS PARA DAR CORAGEM DO QUE RESPOSTAS?
O GP de Creative B2B foi para a GoDaddy, com o case "Act Like You Know", estrelado por Walton Goggins. A campanha mostra como um pequeno negócio fictício, e depois real, foi criado do zero com IA – do site à identidade visual.
A GoDaddy não promete inovação. Entrega autonomia. Mostrou como a criatividade pode atuar em diferentes pontos de contato com consistência e leveza, destacou o CEO da DPZ, Benjamin Yung, jurado brasileiro nesta categoria.
A pergunta que ecoa é outra. Como a tecnologia pode dar segurança para quem está começando, mesmo que não saiba exatamente o que está fazendo?
O QUE SIGNIFICA CONTINUAR RELEVANTE NO TEMPO
Um fenômeno perceptível em vários GPs deste ano é a longevidade dos projetos. Telefonica, Vaseline e AXA são marcas que retornam ao festival com desdobramentos de soluções já premiadas, porque elas continuam funcionando, evoluindo, reverberando.
A grande pergunta talvez seja essa. O que significa continuar relevante quando o mundo gira rápido demais?
Mustafa Suleiman, da Microsoft AI, disse que a criatividade real está na ambiguidade, na colisão inesperada de ideias. E que o futuro pertence não a quem domina todas as respostas, mas a quem se permite fazer perguntas novas com ferramentas novas.
os trabalhos mais relevantes até agora mostram que o problema não está no propósito, mas no modo como ele é tratado.
O espaço das ideias é infinito. Mas, para criar algo significativo, temos que colocar o humano no centro e a pergunta certa na base.
Essa mudança não é uma projeção futura. Está em curso, sendo moldada em tempo real. "Sinto que a nossa comunidade criativa global está amassando a massa, forjando essa perspectiva, mas ainda está no gerúndio", diz Erlana Castro.
Os cases premiados no Cannes Lions 2025 são relevantes porque carregam essa inquietação: não estão respondendo a um briefing. Estão reformulando o briefing.
Mais do que narrativas inspiradoras, o festival mostrou sistemas vivos de questionamento. Uma nova ética da criação.
Talvez a pergunta mais potente de todas tenha sido feita por John Hegarty, com a simplicidade de quem viu muitas modas passarem: “não tente ser o maior. Tente ser o mais corajoso”.