Design thinking à brasileira: gambiarra sobe ao palco do Cannes Lions
Na estreia da homenagem ao País Criativo do Ano, os brasileiros Bia Lopes Maria e Thiago Costa dão um novo significado para a “gambiarra”

Uma impressora 3D que funciona a partir de sucata. Uma casa feita com oito mil garrafas de vidros recicladas. Soluções brasileiras vindas da periferia brasileira que demonstram inovação, sustentabilidade e, lógico, criatividade.
Um design thinking verde e amarelo, capaz de criar e transformar a partir da escassez. Uma boa gambiarra. E o que isso tem a ver com o Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions? Tudo.
Os publicitários e fundadores do laboratório criativo Quintal, Bia Lopes Maria e Thiago Costa, levam a gambiarra para os palcos do Cannes Lions 2025 nesta quarta-feira (dia 18). Bia é diretora de criação associada na Jotacom; Costa é designer de arte do iFood.
Ambos aproveitaram que o maior festival de criatividade internacional homenageia o Brasil como “país Criativo do Ano” para falar sobre a inovação que vem da periferia e da inteligência coletiva verde e amarela.
Na apresentação, feita integralmente em português, Bia e Thiago partem do humor, dos memes e dos objetos comuns para propor uma provocação: se a gambiarra resolve um problema, por que não é considerada inovação?
"A ideia é ensinar gambiarra como uma técnica. Como um processo criativo que parte do que já existe”, explica Bia. “Se fosse falado em inglês e viesse com post-it, seria design thinking.”
"Sobreviver já é uma gambiarra."
A proposta da dupla é ressignificar a palavra e o que ela representa a partir de um olhar mais atento ao cotidiano brasileiro. Eles apresentam a gambiarra como uma prática sistematizada, baseada na observação, na adaptação e na capacidade de criar a partir da escassez.
Para os dois, a gambiarra é mais do que um improviso. É método, repertório e resposta à desigualdade estrutural. “Se a gambiarra resolve um problema, ela é uma tecnologia. E se é uma tecnologia, é inovação”, argumenta Thiago.
O que o mercado reconhece como processo criativo muitas vezes já acontece nas periferias, mas sem o mesmo reconhecimento. É essa inversão de perspectiva que eles querem provocar em Cannes.
IMPROVISO NÃO, INOVAÇÃO
O que Bia e Thiago propõem é olhar com mais atenção para o repertório criativo brasileiro e assumir que ele já opera com as ferramentas que o mercado costuma valorizar com outro nome. “A gente traduz essa inovação do design thinking para a gambiarra”, explica Bia.
Essa lógica de reaproveitamento criativo aparece na prática da Quintal, o laboratório fundado por Thiago, onde os dois desenvolvem projetos com marcas, artistas e iniciativas culturais.

“Assinamos o brand da produtora do Seu Jorge, e esse trabalho foi uma grande gambiarra. A gente coloca o disco "Amarelo", do Emicida, escuta, olha para o que temos de referência e construímos a partir disso.”
A própria ideia da apresentação em Cannes assim: juntando referências, experiências e um incômodo antigo com a forma como a palavra “gambiarra” é tratada. “Quando abrimos um livro de marketing, de criatividade, quem está contando essa história? Cadê a criatividade periférica? A gambiarra não está nos livros. Mas ela está acontecendo”, defende Bia.
O QUE E PARA QUEM ESTÁ CRIANDO?
Mas não se trata apenas de como se cria. A apresentação da dupla levanta outra provocação, ainda mais urgente em tempos de inteligência artificial, ESG e hiper produtividade: o que estamos criando? E para quem?
se a gambiarra resolve um problema, por que não é considerada inovação?
“A inteligência artificial, usada em larga escala, polui mais que um voo internacional. Cada prompt pode emitir até 500 gramas de CO2. Que inovação é essa que custa tanto e polui tanto?”, questiona Bia. “A gente reforça: tecnologia é boa quando anda de mãos dadas com sustentabilidade. Mas que inovações queremos fazer?”
Em 2025, o Cannes Lions celebra o Brasil como País Criativo do Ano, uma escolha que, para Bia e Thiago, carrega responsabilidade. “O que o Brasil tem de criativo? Que Brasil é esse que vai ser homenageado?”, pergunta Bia. “Se vamos falar do jeitinho brasileiro de criar, precisamos olhar para as formas que já existem, mas que muitas vezes foram marginalizadas.”
VIVER E SENTIR SÃO UMA GAMBIARRA
A experiência de Bia e Thiago no mercado publicitário é parte fundamental dessa construção. Ambos atuam há mais de uma década com agências, marcas e projetos independentes e reconhecem que estar nesses espaços, muitas vezes, também foi um exercício de gambiarra.
O último Censo de Diversidade das Agências Brasileiras mostrou que mulheres negras representam apenas 17% do quadro total de funcionários de agências. A proporção desse grupo diminui conforme a hierarquia: apenas 6% nas diretorias e 3% no cargo de CEO.
“Quando entrei nesta indústria, eu era a única mulher negra na agência, que tinha mais de 400 pessoas”, lembra Bia. A área de criação também tinha poucas mulheres. A gambiarra, nesse sentido, a fortaleceu, pois deu a ela um caminho novo para ocupar esse espaço.

E também para abrir espaço para os outros. Este ano, por exemplo, Bia e Thiago levam para Cannes quatro outras pessoas pretas para o festival. A gambiarra aqui é uma prática política, de inserção no mercado.
Para Thiago, essa construção é feita de vínculos. “A gambiarra também está no afeto”, afirma. Hoje atuando como diretor de arte no iFood, ele conta que foi atravessando diferentes espaços com a ajuda de outras pessoas, em um movimento de rede, indicação e presença. “Sobreviver já é uma gambiarra. A gente olha para trás e consegue ver que não anda só.”
No palco, a gambiarra se torna verbo, método, repertório. Nas mãos de Bia e Thiago, ela ganha o status de linguagem: uma forma de pensar e fazer que é, antes de tudo, brasileira.