O puro caldo de Cannes: o que os Grand Prix têm a dizer sobre o futuro da indústria

Não é mais sobre contar histórias. É sobre fazer história

Créditos: Freepik/ imagem criada com IA via ChatGPT

Erlana Castro 11 minutos de leitura

Que download, que nada. A gente quer uma síntese que nos alimente e direcione estratégica e criativamente. O puro caldo do Cannes Lions 2025, fresco e útil para quem precisa tomar decisão. Processado com método, tempo e inteligência natural. 

Mais que um balanço de prêmios, é uma leitura sistemática do que o tradicional Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions coloca em discussão sobre o presente e o futuro da criatividade, no âmbito dos negócios, em 2025.

SEPARANDO RUÍDO DE SINAL

A parte mais importante de um trabalho de pesquisa é justamente separar ruído de sinal. Em Cannes, meu método é direto e rigoroso: assisto, anoto e gravo todas as nove sessões matinais para imprensa com os presidentes de júri, entrevisto alguns deles e observo o que pulsa forte pelo festival.

Junto tudo o que vi, ouvi e percebi em uma semana intensa de imersão, cruzo com mais de 30 anos de vivência na propaganda e traduzo tudo isso em perspectiva para negócios e marcas. 

Desde 2023, tenho o privilégio de colaborar como pesquisadora com a cobertura oficial do Cannes Lions pela Fast Company Brasil  e sempre terei um olhar para o que inova, cria valor e move o mundo.

Essas sessões com o júri são o coração analítico do festival. Uma por uma, as 32 categorias apresentam seu Grand Prix. Assistimos juntos ao videocase e cada presidente explica o que os jurados procuraram, o que premiaram, o que descartaram – e o mais interessante: quais tendências se revelaram ao longo dos julgamentos. É uma síntese das sínteses das sínteses. É puro sinal.

O primeiro caldo disso é o que trago aqui. 

CANNES COMO FAROL, NÃO COMO VITRINE

Sempre ressalvo que o Grand Prix é o prêmio dos prêmios do festival e tem a declarada intenção de estabelecer o benchmark em excelência criativa e um norte para toda a nossa indústria.

Este, para mim, é o principal papel dos mais de 512 colegas jurados únicos, representando cerca de 80 nacionalidades, nas 32 disciplinas abordadas. Cannes Lions é, há 72 anos, o maior fórum de validação entre pares da indústria criativa global. 

É por meio desses 34 Grand Prix distribuídos (um deles retirado) este ano que buscaremos uma perspectiva para a construção estratégico-criativa de marcas e negócios, no presente e futuro próximo. Teremos Cannes como farol, não como vitrine.

EM 2025, CONVERGIMOS MAIS DO QUE DIVERGIMOS

Estava muito atenta e disposta a compreender o quanto a agenda anti-ESG e/ ou anti-woke havia afetado o envolvimento das marcas nas pautas ambientais e sociais. O quanto os colegas jurados iriam desviar da pauta ao atribuir as premiações, sobretudo os Grand Prix. 

Também estava muito curiosa para captar a questão da inteligência artificial e seu impacto na indústria criativa como um todo. E, claro, qual seria o novo ciclo do “social”, diante de um certo desencanto e da força dos creators.

Considerando tudo isso, observando os Grand Prix e a sala do júri, o que vi foi uma grande zona de convergência.

Ela pode ser agrupada em cinco vetores principais:

  1. No atual papel das marcas e dos negócios junto à sociedade 
  2. Na fragmentação radical da mídia e a hipercontextualização da criatividade
  3. No lugar atual e ideal da IA no processo criativo humano 
  4. No craft (execução criativa) como meio de transformação, inclusão e amor ao ofício
  5. Na linguagem criativa como regeneradora da esperança, da alegria e da ação.

MELHORAR O MUNDO COMO TERRITÓRIO CRIATIVO

Cada um desses cinco vetores é um capítulo, mas pelo seu enunciado já conseguimos ver aspectos da discussão que trazem.

Além de estarmos convergindo nessas direções, há um fenômeno criativo transversal que vem crescendo notadamente nos últimos anos: marcas e negócios passaram a abordar diretamente os principais problemas da sociedade como uma grande provocação criativa.

São muitos os "problemas para resolver", são muitas as "dores" para aplacar e há um enorme valor potencial a se criar neste território: regenerar o meio ambiente e a sociedade, ao mesmo tempo em que se cria valor extraordinário de volta para o negócio. 

Isso inspira uma nova pergunta. E se o que convencionamos chamar de ESG fosse o seu principal território para criação de valor? Seu território criativo? 

Esse é o novo briefing para os negócios. É também a lente que utilizo para observar o festival.

3 IDEIAS, 9 GRAND PRIX, 1 DIREÇÃO

Dentro deste cenário, três trabalhos se destacaram com força: "AXA Three Words", "Caption with Intention" e "Dove Real Beauty". Juntos, somam nove Grand Prix em nove categorias diferentes. 

Esses três trabalhos não apenas vencem triplamente o prêmio máximo – eles apontam um novo patamar de ambição criativa. Vamos nos aprofundar nesses três exemplos para obtermos um primeiro caldo dos Grand Prix de 2025.

AXA: TRÊS PALAVRAS E UM NOVO CONTRATO SOCIAL

A AXA venceu três Grand Prix (Direct, Business Transformation e Titanium) por transformar criativamente um problema estrutural em valor imediato para a sociedade e para o negócio.

A campanha não foi premiada apenas pela sua execução criativa minimalista, silenciosa e potente – três palavras e um marca texto amarelo. Mas pela coragem institucional de agir com consequência, pelo alinhamento entre propósito e produto e pela clareza em demonstrar que as maiores oportunidades de criação de valor extraordinário residem na solução dos problemas urgentes e importantes que nos afligem. 

Resolver nossas “dores” reais com soluções de negócios reais. Isso é o core business do momento, não apenas uma plataforma de marca, e menos ainda uma narrativa colateral.

Vale muito assistir ao videocase, mas vai um resumo de 30 segundos: Na França o seguro doméstico é obrigatório por contrato e em geral prevê realocação imediata em caso de incêndio e inundação. A AXA acrescentou ao contrato três palavras: incêndio, inundação e violência doméstica

Com efeito retroativo a todos os contratos vigentes e sem precisar que o contrato esteja no nome da mulher. Realocação imediata juntamente com as crianças para um abrigo adequado com apoio jurídico, médico e psicológico. Simples assim. De saída, realocaram mais de 100 mulheres e filhos.

Em um contexto em que a contratação desse serviço é obrigatória, que empresa você escolheria hoje e na próxima renovação contratual? Que efeito isso terá sobre a indústria inteira de seguros, seja na França, seja no Brasil, por exemplo? 

O que as 3 diferentes categorias premiaram:

  • Direct Lions: o impacto imediato no negócio e na sociedade, a escala replicável, o insight universal e a intervenção real. 
  • Creative Business Transformation Lions: um exemplo de como propósito não só cria valor extraordinário como redesenha produto, processo e operação de toda empresa e de todo o setor de seguros. É creative, é business e é transformation
  • Titanium Lions: um ponto de virada para toda indústria – a AXA não marca uma tendência, marca uma mudança de paradigma. “O primeiro dominó” de um sistema agora em movimento. 

O que a indústria criativa precisa escutar:

  • Criatividade não se limita à comunicação, vai fundo na transformação/ evolução/ adaptação do negócio. 
  • Marcas podem e devem apoiar a sociedade onde o Estado não alcança – e ao fazerem isso, constroem mercados, vantagem competitiva e valor extraordinário.
  • Há um novo e urgente tipo de entrega criativa: dignidade

O case da AXA, na minha visão, foi o que melhor representou a potência da discussão sobre como criar valor extraordinário para o negócio, a partir da criação de valor real para seus stakeholders e para a sociedade. Os próximos cases ampliam, aprofundam e validam essa perspectiva.

CAPTION WITH INTENTION: INCLUSÃO COMO ALAVANCA DE VALOR EXTRAORDINÁRIO

A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, juntamente com a Chicago Hearing Society foram premiadas com três Grand Prix (Digital Craft, Design e Brand Experience & Activation). A iniciativa corrige um descaso de 50 anos da indústria audiovisual: legendas genéricas, insensíveis ao tom, à voz e à autoria da fala.

Mais do que um recurso técnico, a inovação transforma legendas em interface narrativa e de expressão, com impacto direto para muito além da comunidade surda, criando uma nova experiência e um novo padrão global.

O que os três júris reconheceram

  • Digital Craft Lions: a obsessão pela execução a serviço da função: sincronização palavra a palavra, tipografia que responde à entonação, codificação de personagens por cor. A fusão entre inteligência artificial e criatividade como solução invisível, sem fricção e com leveza.
  • Design Lions: clareza funcional, rigor estético e impacto humano combinados, reposicionando a legenda como um sistema de linguagem para inclusão e equidade.
  • Experience & Activation Lions: essa categoria exige ação, não discurso. "Caption with Intention" põe o espectador no centro, resolve uma falha histórica da indústria, expande a acessibilidade para além da comunidade surda e propõe uma nova referência para experiência audiovisual.

É unânime o entendimento de que não se trata de “inovação pontual”. É uma solução escalável e aplicável a estúdios, streamings, produtos de educação, games. Assim como a AXA, esse modelo pode ser adotado por múltiplos mercados.

O que isso representa em termos de negócios 

  • Criação de valor real imediato: resolve uma dívida histórica com cerca de meio bilhão de pessoas, melhorando a experiência para 100% dos usuários.
  • Posicionamento estratégico: a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas se coloca como agente de reinvenção da experiência audiovisual tendo a acessibilidade universal como core.

Investimento em design e craft como vantagem competitiva: a potência está na execução elaborada e quase obsessiva – design responsivo, engenharia de som, 10 meses de testes com usuários surdos.

"Caption With Intention" consolida a inclusão como novo território de valor e nos lembra que criar experiências é, também, fazer justiça e corrigir distâncias. Vale a pena assistir ao case e conhecer o resultado.

DOVE REAL BEAUTY: UMA PLATAFORMA ATUAL E ETERNA

Dove venceu três Grand Prix (Media, Creative Strategy e Glass) com dois projetos distintos, mas sustentados pela mesma plataforma: Real Beauty, que há 20 anos atua com consistência sobre o imaginário coletivo da real beleza feminina.

A marca partiu, em 2004, de um insight devastador: apenas 2% das mulheres se achavam bonitas. Desde então, atua com persistência institucional, incluindo curadoria de conteúdo, advocacy, projetos sociais, pesquisa e mudanças sistêmicas.  Em 2024, foi reconhecida como a marca mais inclusiva do mundo pelas próprias mulheres. 

Mais recentemente, uma nova ameaça vem aprofundando o problema: uma em cada três mulheres mudaria sua aparência física baseada em imagens geradas por IA.

Dove responde a isso com tecnologia e convicção, programando algoritmos e ensinando IA para promover a real beleza. A ideia dessa ação nasce no Brasil, pelo time da Droga5, e soma-se à plataforma da marca – que se atualiza sem nunca se diluir.

O que as 3 diferentes categorias premiaram:

  • Media Lions: Dove transforma a mídia em ferramenta ativa de reparação social e cultural. A IA não é tratada como ameaça abstrata, mas como sistema que pode – e deve – ajudar a resolver problemas humanos. A marca age dentro das plataformas, entendendo algoritmos, linguagem e cultura para influenciar resultados, moldar prompts e distribuir representações reais de beleza. O júri premiou exatamente isso: “media as the creative force”, ou seja, o uso da mídia como ideia central e o domínio técnico/ tecnológico (mentalidade de hacker) no compromisso com a entrega criativa.
  • Creative Strategy Lions: Dove sustenta há 20 anos uma mesma plataforma com impacto real e relevância duradoura. O diferencial está na persistência e na capacidade de identificar aspectos culturalmente sensíveis – o “insight devastador” que dispara grandes movimentos. A estratégia conecta narrativa, produto, reputação e advocacy de forma orgânica e contínua. Não é apenas uma big idea, mas uma “connecting idea” com lastro na marca, aplicabilidade e impacto em escala.
  • Glass Lions: O júri reconheceu a legitimidade de quem não capitaliza um tema social importante, mas ocupa esse território com coragem e sem oportunismo: “it’s not about trend, it’s about true.” Dove age sobre o problema com consequência, operando a longo prazo uma profunda e transformadora verdade institucional. 

O QUE CANNES SINALIZA COM ESSE TRIPLO RECONHECIMENTO

  • Plataformas de marca duradouras e consistentes não se repetem nem ficam “chatas” e previsíveis. Evoluem criativamente e acompanham o contexto cultural e tecnológico. 
  • Grandes ideias resolvem problemas reais, conectam e sustentam o movimento por meio de entregas criativas que se renovam continuamente. 
  • Marcas devem reconhecer e atuar sobre sua enorme responsabilidade cultural.

Em um mercado obcecado por novidade, Dove mostra que plataformas criativas podem ser eternas e, ao mesmo tempo, super atuais. 

A marca vai “de uma simples barra de sabão, a um negócio com valor atual de US$ 9,7 bilhões”. Uma verdadeira prova de que persistência é premiável.

DE STORYTELLING PARA HISTORY MAKING

Tendo em consideração esses três supercases premiados, no que toca a presença de uma marca e sua interferência criativa no contexto, podemos entender que:

Não é mais sobre contar histórias. É sobre fazer história.  

Essa mesma ambição e abordagem criativa se fez presente em 24 dos 34 Grand Prix distribuídos em 2025. 

É esse caldo que a gente vem buscar em Cannes. E como bem disse minha amiga Adriana Machado “que download, que nada… o que a gente faz mesmo é um bom Caldo de Cannes”. 

Vai?


SOBRE A AUTORA

Erlana Castro é palestrante internacional, autora, pesquisadora independente e professora convidada da Fundação Dom Cabral, fundadora ... saiba mais