Desafiando o futuro: o Brasil no SXSW 2025

Mais do que esperar que o SXSW se transforme, espero que o Brasil molde o SXSW 2025 com o que temos de melhor

Créditos: Shot by Cerqueira/ Unsplash/ AtomicSparkle/ iStock

Danilo Azevedo 6 minutos de leitura

Estive presente duas vezes no festival South by Southwest, o maior evento de inovação do mundo, realizado desde 1987, em Austin, no Texas.

Na edição de 2023, o clima era de... digamos... barata-voa.

Poucos meses antes, os primeiros assistentes de conversação baseados em IA haviam sido disponibilizados ao público geral de forma gratuita, desencadeando um maremoto em praticamente todas as profissões.

Durante o evento, as possibilidades abertas pelas demonstrações tecnológicas continuaram acelerando e tomando formas ainda mais estruturais. Muita gente com quem conversei compartilhou uma quantidade de questionamentos sem respostas que fez os níveis de curiosidade e inquietação alcançarem picos surpreendentes - e ninguém ficou livre de um tiquinho assim de terror existencial.

Podemos levar a sério a sugestão do festival e nos organizar com nossa própria história e inteligência orgânica.

O futuro deu suas caras e parecia futuro demais para processar. Essa inquietude, que você também deve estar sentindo, já seria parte de um momento descrito pela futurista Amy Webb como a geração da transformação, em relatório apresentado na edição deste ano.

Em 2024, provavelmente em reação ao festival anterior, minhas impressões não foram de continuidade, mas de uma certa bifurcação de propostas. Muitos eventos, palestras, exposições e conversas insistiram na importância de não abrirmos mão de nossa história para colocar no lugar a tendência vigente.

Empresas trabalhando com tipografias manuais, exposições de artesanato, valorização de arquivos centenários em coleções de roupas manufaturadas…

Em vez de dobrar a aposta na automação e no que a inteligência de máquina pode manifestar, a lógica de curadoria do ano foi a de louvar a capacidade humana de inovação e a história das coisas – a própria história do South by Southwest, que parece ter enfatizado suas origens criativas nesta edição.

"Amor e Progresso II", Inspirado na obra "Oké Oxóssi", de Abdias Nascimento, pelo artista Emerson Rocha (Crédito: Reprodução/ Instagram)

E como nada acontece no vácuo, fiquei feliz com alguns resultados do Oscar 2024, em que o filme japonês "Godzilla Minus One" ganhou a estatueta de melhores efeitos visuais por simular o mesmo estilo de animação do primeiro filme da franquia, feito em 1954, reforçando o espírito do nosso tempo.

Tivemos o prêmio de animação entregue ao Studio Ghibli e ao responsável pelo projeto, Hayao Miyazaki, pelo filme autobiográfico "O Menino e a Garça", que fala sobre legado e continuidade e que, pasmem, foi totalmente desenhado à mão.

Foi como se, desafiada pelas demonstrações da inteligência artificial do ano anterior, a "inteligência orgânica" tivesse buscado o mesmo lugar para exibir suas habilidades. O zeitgeist da inovação, de acordo com o SXSW, parece ter se cristalizado nos nossos sentimentos a respeito da tensão entre a IA e a humanidade.

Pelo escopo do todo e complexidade das partes, não é dos quebra-cabeças mais fáceis de se resolver. Acho pertinente focarmos em nosso contexto, o brasileiro, aquele com o qual temos mais familiaridade e do qual fazemos parte.

"O Menino e a Garça" (Crédito: Studio Ghibli)

Podemos, enquanto brasileiros, levar a sério a sugestão do festival e nos organizar com nossa própria história e inteligência orgânica. Precisamos nos aprofundar também em nossos acervos, arquivos e curadorias.

Aqui vale um salve ao banco Itaú, um dos principais patrocinadores do SXSW pelo segundo ano consecutivo. Desde o fim do ano passado, o banco consolidou seu slogan na poderosa frase "Feito de futuro" e convidou Ronaldo, Jorge Ben, Marta, Fernanda Montenegro, entre outros artistas, para contar esta história. Quem sabe essa jornada não continue na valorização de artistas, pensadores e trabalhadores que ainda não conquistaram o seu presente?

HAPPY HOURS E CLIMA DE ALMOÇO DE DOMINGO

Outra dinâmica interessante do festival são os happy hours, jantares e encontros patrocinados por empresas brasileiras para que executivos, em sua maioria também brasileiros, se encontrem e falem de negócios. Quase todos os líderes do setor de comunicação acabam se encontrando repetidamente nessa dinâmica, onde tive a oportunidade de participar de algumas rodas.

O que mais me chamou atenção foi como os assuntos de negócios duravam pouquíssimos minutos e eram rapidamente substituídos por trocas em nível pessoal e muito humano. "Como está a sua filha?" "Como é namorar alguém com filhos pequenos?" "Acostumou com a rotina após vender a empresa?" "Não suma, senti saudades."

Ficou claro que nenhuma empresa conseguiria se apropriar desta intimidade típica de churrasco de domingo.

Quando penso no poder dessas pessoas reunidas e seus históricos, não apenas de conteúdo audiovisual mas principalmente na confiança entre mentes criativas que influenciam a nossa integridade, enxergo a responsabilidade e oportunidade desse grupo na construção, não só de um país melhor mas, principalmente, de um país possível.

Corre, obre do artista Rhay (Crédito: Reprodução/ Instagram)

Meu clímax se deu ao som do artista Marcelo D2, em um pequeno bar chamado Speakeasy, onde ele apresentou seu novo "Iboru", estilo novo samba tradicional, graves do trap e tambor de aço – em resumo imagético, um terreiro raiz com galhos altos.

A história do álbum, tocado pela primeira vez na gringa inclusive pelo valor estratégico desse público para influenciar o globo, passa pela homenagem a sua mãe, dona Paulete. Ela faleceu recentemente e o fez mergulhar na história que nos trouxe até aqui, com questões existenciais e respostas maternas resgatadas em áudios de WhatsApp, agora imortalizadas na gravação do disco.

A lição é estar aberto ao futuro e, ao mesmo tempo, imbuído em nossa relação com os que vieram antes de nós. O futuro é ancestral e digital. A ancestralidade estará na nuvem, nos modelos de linguagem de larga escala; o digital  jamais conseguirá replicar as nossas raízes, a nossa cultura, a riqueza de qualquer povo, de qualquer pessoa.

Só no Brasil temos mais de 300 etnias de povos originários, uma verdadeira ONU à parte, além da influência da mãe África, que nos brindou com talentos, alegrias e, é claro, muito sofrimento, moldando-nos na terra das diversidades chamada Brasil.

Exatamente por isso, não há como finalizar este artigo sem mencionar o número de brasileiros no evento – 2,3 mil, segundo a organização, sendo a maioria profissionais, emissários de seus empregadores.

"Eu sou a força da minha mãe e a fraqueza dela também", do artista Junior Next (Crédito: Reprodução/ Instagram)

A quantidade de não brancos (brasileiros ou não) a prestigiar o evento era quase nula, com honrosas exceções (Edu Lyra, Kondzilla, Nina da Hora etc.). Faltou diversidade. Na aurora dos prompts, treinamentos e reconhecimento do racismo estrutural, este é um padrão desolador que nos acompanha.

Pensemos juntos por um momento: se dependêssemos de uma ferramenta como um modelo de linguagem em larga escala para abarcar tudo o que é importante na experiência brasileira, tal como a compreendemos, estaríamos empobrecendo tanto o modelo que seria impossível reconhecê-lo como brasileiro.

Não estaríamos otimizando nosso futuro ao excluir da conversa pessoas talentosas, imaginativas e admiráveis, baseando-nos apenas em fenótipos? Se nosso objetivo no festival for reunir profissionais das áreas de tecnologia, música, cinema, mídia e cultura para promover a inovação, não deveríamos adotar uma postura que priorizasse a diversidade?

Mais do que esperar que o SXSW se transforme, espero que o Brasil molde o SXSW 2025 com o que temos de melhor. Sem pretos, pardos, originários, asiáticos e refugiados não teremos tanta beleza, tanta grandeza e, acima de tudo, contaremos histórias que perderão seu enredo verdadeiro, sua alma.

Este texto foi escrito com a contribuição de vários amigos e não reflete necessariamente a opinião da empresa em que trabalho.


SOBRE O AUTOR

Danilo Azevedo é executivo de contas no Google Brasil e tem como compromisso promover a transformação social por meio do acesso ao con... saiba mais