Neurociência explica como os jogos são capazes de moldar nossas vidas

O cérebro criou jogos para hackear a si mesmo – e temos noção disso há milhares de anos

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Kelly Clancy 5 minutos de leitura

Kelly Clancy é uma neurocientista especializada em biologia da inteligência. Ela já ocupou cargos de pesquisa no MIT, na Universidade da Califórnia, na University College London e na empresa de IA DeepMind.

A seguir, ela compartilha insights do seu novo livro, “Playing with Reality: How Games Have Shaped Our World” (Brincando com a Realidade: Como os Jogos Moldaram Nosso Mundo).

JOGAR É UM INSTINTO

Os jogos são uma invenção extraordinária. Seja um jogo de tabuleiro, de videogame, de cassino ou qualquer outro, todos são criações do cérebro para proporcionar prazer por conta própria. Em outras palavras, o cérebro os criou como uma forma de hackear a si mesmo.

Eles tocam em algo profundo dentro de nós, transcendem o tempo, a cultura e a linguagem. A humanidade joga xadrez e gamão, por exemplo, há milhares de anos. Mas o ato de jogar é muito mais antigo do que a própria humanidade.

Muitos animais, e até mesmo insetos, fazem isso. É assim que praticam habilidades físicas – como gatinhos que atacam brinquedos para aperfeiçoar suas técnicas de caça.

Nós, humanos, por outro lado, jogamos para desenvolver habilidades mentais. Através dos jogos, nossos cérebros criam um ambiente seguro para adquirir novas experiências. Com eles, aprendemos muito sobre o mundo e sobre o próprio processo de aprendizado.

Mesmo que você não jogue tanto na vida adulta, os jogos da infância moldaram muito do seu modo de pensar e de perceber o mundo hoje. Eles não são apenas uma invenção; são um instinto.

O PODER DA PROBABILIDADE

Os matemáticos formalizaram a relação entre jogos e a tomada de decisão. Jogos de azar eram extremamente populares na Europa renascentista, e os jogadores estudavam as probabilidades dos dados para aumentar suas chances de vitória.

Isso acabou levando à criação da teoria das probabilidades. Pela primeira vez, tínhamos uma linguagem matemática para expressar o que não sabíamos.

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A teoria das probabilidades foi fundamental para a revolução científica, pois permitiu que os cientistas analisassem dados reais e expressassem as incertezas em suas medições. Isso nos deu a capacidade de fazer previsões quantificadas sobre o futuro.

Hoje, dizer “há 40% de chance de chover amanhã” parece algo corriqueiro, mas essa capacidade de tomar decisões baseadas em dados é revolucionária. E devemos isso aos jogos.

Esta revolução matemática influenciou quase todas as disciplinas acadêmicas e gerou vários novos campos. Estrategistas militares alemães usaram estatísticas para transformar o jogo de xadrez em Kriegsspiel, um jogo de simulação de guerra usado para ensaiar batalhas.

os jogos da infância moldaram muito do seu modo de pensar e de perceber o mundo hoje.

Quando Charles Darwin estava preparando seu trabalho sobre a evolução, se sentiu frustrado por não saber matemática o suficiente para expressar suas ideias de forma mais concreta. Sessenta anos depois, os biólogos descobririam que a mesma matemática usada para descrever lançamentos de dados capturaria o fluxo da seleção natural.

Muitos conceitos fundamentais para a economia, a ciência e a medicina modernas – como probabilidades, incentivos e valor esperado – vêm dos jogos.

OS JOGOS NOS MANIPULAM

A teoria dos jogos é a base da economia moderna, mas não reflete com precisão o comportamento humano. E isso é mais do que um problema teórico. Se construirmos sistemas baseados na premissa de que as pessoas são egoístas, podemos acabar levando-as a agir dessa forma.

O famoso designer de jogos de tabuleiro Reiner Knizia diz que a primeira coisa que faz ao criar um jogo é desenvolver um sistema de pontuação. A maneira como os jogadores são recompensados determina como eles irão agir.

Pense no Banco Imobiliário, por exemplo. Para vencer, é preciso agir como um capitalista ganancioso. Mesmo que seja socialista na vida real, o jogador tem que seguir as regras do jogo. Não dá para ganhar compartilhando lucros ou se recusando a cobrar aluguel.

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Os jogos estão escondidos em muitas das nossas tecnologias. Seu design influencia a maneira como interagimos nas redes sociais, como os aplicativos de namoro funcionam e como os anúncios nos são apresentados.

Sem perceber, estamos participando de jogos ocultos e sendo recompensados por comportamentos que, talvez, nem nos orgulhemos – em outras palavras, os jogos nos manipulam.

PENSANDO COMO UM DESIGNER DE JOGOS

Ao longo da história, grandes pensadores acreditavam que os jogos poderiam nos ensinar lições valiosas sobre a vida. Platão, por exemplo, acreditava que os jogos infantis eram fundamentais para a educação cívica, pois ensinavam os futuros cidadãos a seguir regras.

Na Idade Média, cavaleiros e nobres eram obrigados a aprender xadrez, que era visto como um espelho da alma, uma forma de aprender sobre si mesmo.

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Hoje, muitos líderes empresariais jogam pôquer para aprender a “ler” as pessoas. O ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger dizia que, para entender os líderes chineses, os formuladores de políticas ocidentais deveriam aprender a jogar Go. Os jogos podem nos ensinar a ser melhores negociadores e estrategistas.

Mas também podemos ir além e fazer uma pergunta ainda mais fundamental: estamos jogando os jogos que realmente queremos jogar? Como podemos criar jogos melhores?

Os jogos estão escondidos em muitas das nossas tecnologias.

Podemos aplicar esse pensamento ao modo como administramos um negócio, por exemplo. Curiosamente, muitos dos maiores nomes da tecnologia começaram criando games.

Um dos primeiros programas de Bill Gates era um jogo-da-velha. Sundar Pichai, agora CEO do Google, desenvolveu um motor de xadrez na juventude. Marc Benioff, da Salesforce, vendia títulos como Crypt of the Undead para Atari.

Estudar como os jogos funcionam e como projetar dinâmicas específicas pode ajudá-lo a desenvolver a habilidade excepcional de pensar em termos de sistemas. Essa área é chamada de design de mecanismos, e economistas a utilizam para criar novos mercados, sistemas de votação e muito mais. O objetivo é construir jogos mais justos, onde todos possam sair ganhando.

Este artigo foi publicado originalmente no “Next Big Idea Club” e reproduzido com permissão. Leia o artigo original.


SOBRE A AUTORA

Kelly Clancy é neurocientista especializada em biologia da inteligência. saiba mais