O mundo gamer ainda é machista. E nós precisamos falar sobre isso

Crédito: Fast Company Brasil

Ana Beatriz Camargo 8 minutos de leitura

Assim como são maioria percentual na população brasileira, as mulheres também são maioria entre os brasileiros que jogam jogos eletrônicos. No dia a dia fora das telas, elas ainda precisam enfrentar batalhas diárias pelo respeito. Nas partidas, não poderia ser diferente. Talvez seja até pior. 

Segundo a Pesquisa Game Brasil (PGB), 51,5% dos jogadores são mulheres e 57,5% delas chegam a se considerar gamers. Dados da Newzoo, coletados nos 10 principais mercados globais, apontam que metade dos jogadores mundiais são mulheres. A principal plataforma para atingir essas jogadoras são os smartphones – elas são maioria entre os que jogam no celular. Nos consoles e PCs, a predominância ainda é masculina. 

As experiências que buscam também tendem a ser diferentes das dos homens.  Para eles, jogos no estilo mundo aberto (open world) são mais atrativos. Já para elas, a possibilidade de resolver quebra-cabeças, fazer escolhas criativas e colecionar itens durante o jogo são diferenciais mais valorizados.

No entanto, muito mais do que dados, vida real. Apesar das diversas declarações dos players mundiais em prol de um esforço coletivo para transformar o ambiente gamer em um local cada vez mais diverso e acolhedor – não em relação às mulheres, negros e também integrantes da comunidade LGBTQUIA+ –, ainda existe muito preconceito. Sim, ainda existe muito machismo. E é preciso falar sobre ele. 

Neste mês de março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a Fast Company Brasil publica entrevistas com gamers, streamers e profissionais do setor sobre suas experiências pessoais. São relatos que os dados das consultorias não traduzem e que nos ajudam a entender o que pode ser feito. 

Para começar, direto de Belo Horizonte, a gamer Paula Cabral traz um pouco da sua vivência. Com 26 anos, começou frequentando lan houses, nos anos 2000, onde era praticamente a única menina. De lá para cá, passou pela linha Playstation, Nintendo 360 e hoje joga no computador, além de fazer lives de Valorant na Twitch. Paula está terminando a graduação em publicidade e trabalha na XIS, uma organização de esports. Para ela, videogame sempre foi paixão, mas nunca deixou de ser um lugar para ser confrontada por ser mulher. 

Paula Cabral, jogadora de Valorant
(Crédito: Arquivo pessoal)

Como foi seu início no mundo dos games?
Comecei a jogar desde pequenininha, desde que arrancava o topo do dedão jogando bola na rua. Sempre gostei de jogos, mas era a “carta branca”, ou por ser menina, ou por ser a mais nova do pessoal do meu bairro. Sou da época de lan house, da sessão corujão, que custava R$ 10 – você jogava a noite inteira e ainda ganhava um sanduíche de mortadela e uma Coca-Cola. Jogava Counter-Strike (CS) e GTA. Não sabia as manhas do jogo, nem fazer missões no GTA, eu só jogava matando os outros personagens.

Nesta época, você já sentia diferenciação no tratamento?

Sempre enfrentei muito machismo, porque era, literalmente, a única menina da lan house do bairro. Tinha sorte que meu primo jogava comigo, então ele me validava. Quando os meninos não queriam me colocar no time para jogar CS, meu primo me defendia, falava “ela tá comigo”. Ou seja, desde pequena eu já sofria com essa questão de ser mulher no mundo gamer.

Como foi a transição para os jogos online, com possibilidade de interação? O que mudou?

Tive PlayStation 1, PlayStation 2, Nintendo 360, depois fui para os computadores gamer. Com uns 16, 17 anos, tive meu primeiro computador para jogar. Sempre gostei muito de FPS (first-person shooter, ou jogos de tiro em primeira pessoa). No desktop, comecei a jogar online com Combat Arms e, como usava um avatar feminino, me xingavam bastante. Quando sabiam que eu era menina, os outros jogadores pediam para provar, para eu “abrir call” (termo usado pelos jogadores para se comunicarem por voz dentro do game). 

Era sempre “ah não acredito que é menina mesmo, deve ser feia”, ou “namora comigo”, ou “eu pego leve com ela”, ou “deixo ela matar”. Ou eles tentavam me dar regalias ou era extremamente xingada, zoada, menosprezada. Nunca pensei que as regalias eram coisas positivas. Não estava recebendo porque eles gostavam de mim e do meu jogo, mas porque eu era menina, como se fosse deficiente por ser menina.

O ambiente gamer sempre trouxe esse tipo de comentário? 

Uma coisa que gosto é que os amigos que fiz duraram bastante tempo. São pessoas com quem ainda tenho um certo contato, até viajei para conhecer. E essas pessoas faziam diferença no dia a dia. São amigos que estavam ali, todos os dias, e a gente acabava conhecendo a namorada,  o cachorro, a mãe, que a gente já conhecia os gritos pelos jogos.

Então, embora tenha sofrido muito preconceito, muito machismo, também fiz amigos maravilhosos. Só que todos homens. Não fiz uma amiga mulher. Acho que as meninas, quando jogam, estão mais escondidas. É controverso, eu sei. Até porque, na internet a gente vê muita mulher jogando. Mas, no jogo em si, só acabo fazendo amigos homens. Acontece. 

Você joga de “cara limpa”, com username verdadeiro? 

Hoje eu jogo com meu nick (@CabralPaula). O pessoal acaba pesquisando e encontrando meu perfil nas redes sociais. Não sei por quê, mas no começo falam que eu sou menino. Mas, quando veem minhas fotos, falam “nossa, como você é bonita”. É aí que começa o tratamento diferente. E é isso que me deixa muito brava. Toda vez é isso: “você é menina ou menino?”. Aí eu falo: “cara, faz diferença?“. A diferença é que estou matando você ali no jogo. São sempre os extremos: ou tentam dar regalias, como se a gente fosse deficiente ou precisasse de ajuda, ou são extremamente machistas. É o cavalheirismo incômodo ou o machismo extremo.

São raríssimos os jogadores que não ligam e ficam indiferentes ao fato de eu ser mulher. Quero saber se eu estou jogando bem ou mal por ser uma jogadora, não por ser especificamente uma jogadora mulher. Normalmente, jogo melhor do que eles, aí vem aquela menosprezada.

De lá do início para hoje, os ambientes de jogo online, como são?

Ainda existe muito tratamento diferenciado por parte dos jogadores, mas, comparado com aquela época de lan house e quando eu comecei nos jogos online, hoje é fato que vejo muito mais meninas. Vejo também gente que não está nem aí se eu sou mulher ou homem. Tem meninas que se impõe, sim. Que mandam os caras calar a boca, que xingam de volta. Embora ainda haja muito machismo, muita coisa chata, tem muita menina guerreira que passa por cima. Já rolou até caso de menino que defende a gente, sabe? Que fala para os outros “deixa as meninas jogarem em paz”. 

Game tem espaço para a sororidade feminina?
Eu nunca vi user mulher atacar mulher. Nunca. O que já vi são as meninas se unirem, Mas tem uma coisa que me irrita muito, que é ver uma quantidade grande de meninas jogando como Sage. É um personagem do jogo que a gente chama de suporte, ela serve para curar os outros. A maioria das meninas que vejo jogando o Valorant joga de Sage. Eu jogo com a Reyna, que é o boneco que mata, digamos assim. Quando é uma menina que já está mais acostumada, que não liga muito para os caras, aí ela joga de duelista. É a categoria que eu jogo, que tem a Jett, a Reyna a Neon. É como se a Sage fosse o zagueiro e as outras duelistas, os atacantes.

Reyna, personagem usado por Paula Cabral nas partidas de Valorant (Crédito: Riot Games/ Divulgação

Existe espaço para os jogadores denunciarem dentro dos jogos? Você já denunciou? 

Infelizmente, ainda tem muito preconceito, tanto no chat, por escrito, quanto no microfone. Mas tem como denunciar. Você pode selecionar se foi por chat ou voz, preenche as informações sobre o episódio e envia a denúncia. Já presenciei bastante coisa e já denunciei muito. Sei de relatos de contas que sofreram punições, foram banidas por algum tempo, após as denúncias. 

O que gostaria de ver melhorar em um futuro recente para o ambiente ficar mais saudável?

Sou muito contra as lines, que são as disputas só entre mulheres e só entre homens. Para mim, elas simbolizam que as mulheres seriam inferiores. Por exemplo, em uma disputa de boxe, colocar um homem e uma mulher para lutar seria errado por questões biológicas, musculares, estruturais do corpo humano. Mas, nos games, o que vale é o intelecto, não uma habilidade física. Em termos de jogo, não existe nenhuma diferença de um homem para mulher. Não faz sentido existir line só feminina. Eu e a XIS, a organização onde trabalho, somos totalmente contra. O que espero do futuro do cenário é a line mista, mulher jogando junto com homens nos campeonatos.

Em nota à Fast Company Brasil, a Riot Games afirma que trabalha para garantir um ambiente saudável a todos os jogadores, tendo elaborado um código de conduta para a comunidade onde detalha as ações adotadas para combater práticas antiéticas. Segundo a empresa, todas as denúncias são analisadas. A Riot Games se reserva o direito de tomar as medidas disciplinares apropriadas, inclusive banimento temporário, suspensão ou encerramento e exclusão da conta, diz o comunicado.


SOBRE A AUTORA

Ana Beatriz Camargo é jornalista, heavy user de redes sociais e escreve sobre o mundo dos games. saiba mais