A nova fronteira da IA: controlar o seu navegador para controlar você
Navegadores automatizados prometem conveniência total, mas colocam em risco desde o comércio on-line até o jornalismo e a criação de conteúdo

Para quem ganha a vida publicando conteúdo na internet aberta, o processo que levou a Amazon a mover um processo contra a startup de IA Perplexity pode parecer estranhamente irônico.
A Perplexity está entre as muitas empresas de IA que passaram anos extraindo valor da internet em troca de muito pouco.
Seus crawlers sintetizam quantidades intermináveis de material produzido por veículos de comunicação e criadores de conteúdo – muitas vezes, contornando tentativas de bloqueio – para que a empresa possa coletar informações sem precisar enviar tráfego aos sites de origem.
Agora, a Perplexity e suas rivais estão indo além, impulsionando uma nova onda de navegadores com IA capazes de operar páginas automaticamente. A Perplexity tem o Comet; a OpenAI lançou o ChatGPT Atlas; a Opera apresentou o Neon.Outros já estão a caminho.
A aposta é que agentes de IA em breve conseguirão vasculhar a web no lugar dos usuários humanos: reservar voos, fazer compras de supermercado e até adquirir produtos em sites como a Amazon.
Tanto a Perplexity quanto a OpenAI enxergam esses navegadores como fundamentais na construção de “sistemas operacionais” de IA capazes de gerenciar a vida das pessoas.
A Amazon – que tem muito a perder caso os usuários deixem de acessar diretamente seu site – agora processa a Perplexity para impedir que isso aconteça. A empresa vem tentando barrar a startup, até agora sem sucesso.
E aí está o paradoxo: esses navegadores prometem um futuro no qual ninguém mais precisaria visitar um site, mas isso depende da existência de sites viáveis para serem vasculhados. A ação movida pela Amazon indica que esses dois objetivos talvez sejam incompatíveis.
ALIMENTANDO A MÁQUINA
Para empresas como Perplexity e OpenAI, navegadores passaram a ser importantes porque dão acesso a conteúdos e dados que, de outro modo, estariam fora de alcance.
Considere a Amazon. No site do ChatGPT, você pode pedir recomendações de produtos ou resumos das avaliações. Mas nada disso incluiria dados pessoais ou contextuais da própria Amazon.
Já o Atlas e o Comet podem acessar a Amazon exatamente como ela aparece na sua janela do navegador. Isso significa vasculhar seu histórico de pedidos ou analisar recomendações personalizadas.
as empresas de IA precisam da web aberta para obter contexto, pois outras plataformas são muito fechadas.
A Perplexity argumenta que esses navegadores “agentes” melhoram a experiência de compra e que, por isso, a Amazon deveria abraçar a ideia. Mas a empresa também tem muito a ganhar.
Ao compreender seu histórico de compras, suas recomendações e todas as perguntas feitas ao sistema de IA até chegar a um produto, a Perplexity consegue construir um perfil de usuário muito mais robusto para publicidade segmentada.
“Você passa do rastreamento de comportamento para o modelamento psicológico”, diz Eamonn Maguire, líder da equipe de machine learning da Proton. “Enquanto navegadores tradicionais rastreiam o que você faz, navegadores com IA inferem por que você faz.”
QUEM GANHA, QUEM PERDE
Isso não é especulação. O CEO da Perplexity, Aravind Srinivas, afirmou no podcast TBPN que o navegador vai permitir o envio de anúncios “hiperpersonalizados”, já que conseguirá saber muito mais sobre a vida dos usuários.
“O que você está comprando, para quais hotéis está indo, quais restaurantes frequenta, o que passa tempo pesquisando – tudo isso diz muito mais sobre você”, afirmou Srinivas.
A Amazon, por sua vez, tem muito a perder com agentes de compras de IA, mesmo que eles concluam a venda dentro da plataforma. A empresa opera um negócio de publicidade de US$ 56 bilhões, alimentado em parte pelos anúncios que insere em suas páginas. O CEO Andy Jassy já reconheceu que agentes de IA podem desestabilizar esse sistema.

É possível que você não sinta muita pena da Amazon, mas vale considerar também os muitos pequenos produtores de conteúdo que têm algo a perder com uma web “agêntica”. Sua newsletter favorita – aquela que coloca parte do conteúdo atrás de um paywall – pode acabar exposta dentro das abas de um navegador com IA.
Eamonn também cita o exemplo de pesquisas acadêmicas que ficam atrás de paywalls, ou documentos pessoais que sequer deveriam estar na web. E-mails, listas de compras e aplicativos de produtividade também podem virar matéria-prima para IA aprender mais sobre você.
Embora Perplexity e OpenAI afirmem que não treinam seus modelos com os conteúdos que as pessoas acessam dentro desses navegadores, Eamonn diz que essa política pode mudar a qualquer momento.
POR QUE A WEB ABERTA?
Srinivas reconhece que as empresas de IA precisam da web aberta para obter contexto, já que outras plataformas são excessivamente fechadas.
“A única razão para fazermos um navegador é que não existe outra forma de construir um agente com controle suficiente sobre muitos aplicativos simultaneamente”, afirmou no Upfront Summit, em fevereiro.
navegadores tradicionais rastreiam o que você faz; navegadores com IA inferem por que você faz.
“Especialmente no iOS, não dá nem sequer para acessar outro aplicativo. Você não quer ficar preso ao ritmo em que a Apple constrói seu ecossistema. O navegador é um ótimo atalho para nós, ao menos no curto prazo.”
A OpenAI também descreve o navegador como peça-chave para ambições maiores. “Agora que temos retorno e sinais de centenas de milhões de pessoas no mundo todo, está claro que o ChatGPT precisa ser muito mais do que o simples chatbot que foi no começo”, escreveu Fidji Simo, CEO de aplicações da OpenAI, ao anunciar o Atlas.
“Com o tempo, vemos o ChatGPT evoluindo para se tornar o sistema operacional da sua vida: um hub totalmente conectado para ajudar você a organizar o dia e alcançar seus objetivos de longo prazo”, disse Simo.
NAVEGADORES COM IA x TRÁFEGO HUMANO
Mas enquanto as empresas de IA têm clareza sobre o que podem fazer na web aberta, é menos evidente se a web vai cooperar. Muitos sites já tentam bloquear crawlers de IA.
Navegadores com IA, porém, oferecem outra forma de burlar essas restrições. A ação da Amazon contra a Perplexity pode ser apenas o início de novas disputas quando bloqueios não funcionarem.
As empresas de IA argumentam que resistir é apenas adiar o inevitável. Mas isso levanta uma questão maior: o que restará da web aberta se ela for totalmente intermediada por IA?

Uma crítica frequente a ferramentas como o ChatGPT é que elas destroem os incentivos para criar conteúdo novo, e que a própria IA acabará prejudicada quando não houver mais material inédito para treinar.
“Nada realmente melhora sem conteúdo. Mas o conteúdo está piorando porque as pessoas estão usando IA para gerá-lo, e então os modelos pioram porque o conteúdo piora”, diz Maguire, da Proton.
Com o avanço dos navegadores com IA, um argumento parecido pode ser aplicado à web como um todo: que motivação haverá para criar sites bonitos, únicos e funcionais para humanos se não houver mais humanos navegando por eles?