Contra a maré da IA: por que alguns preferem viver longe dos algoritmos
Movimento contra a inteligência artificial desconsidera o modelo de negócios – e a verdadeira ameaça

Com a inteligência artificial se infiltrando cada vez mais no nosso dia a dia, algumas pessoas têm buscado manter distância – e há boas razões para isso. É uma tecnologia que consome uma quantidade enorme de energia para ser treinada e que contribui para o aumento desenfreado das emissões de carbono.
Também existem inúmeras preocupações com privacidade. E há algo desconfortável no processo de produção desses sistemas, já que o trabalho de classificar e rotular os dados foi terceirizado e é pouco valorizado. Sem falar no risco dos “erros” da IA – desde casos de plágio acidental a citações inventadas.
Confiar nessas plataformas parece estar nos aproximando da condição de um NPC (personagem não jogável) – e isso, no mínimo, provoca um certo mal-estar.
Há ainda a questão da nossa própria dignidade. Sem que tivéssemos escolha, a internet foi revirada e nossas vidas online foram transformadas em combustível para uma máquina gigantesca.
E, no fim, as empresas responsáveis ainda cobram pelo resultado: um banco de informações falante, cheio de conhecimento acumulado, mas sem o toque humano. A era das redes sociais já havia distorcido nossa autoimagem. Agora, a era da inteligência artificial ameaça apagá-la de vez.
EVITANDO A EXPOSIÇÃO
Evitar a IA pode ser, em parte, um ato de autoproteção. Afinal, esses modelos ameaçam atrofiar nossos neurônios (ou, ao menos, a forma como os usamos hoje).
Um estudo recente do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA, mostra que usuários ativos de tecnologias baseadas em grandes modelos de linguagem apresentam “desempenho consistentemente inferior em níveis neurais, linguísticos e comportamentais”.
Muita gente está tentando se proteger dessa exposição. Estamos vendo o retorno dos dumbphones, o surgimento de grupos de adolescentes que defendem uma vida sem smartphones e até uma redescoberta do velho bloco de notas. Um amigo solteiro contou que, nos aplicativos de namoro, o desinteresse por IA virou um atrativo – não usar a tecnologia agora é visto como algo positivo.

Mas, à medida que mais pessoas se desconectam, corremos o risco de reduzir o enorme problema da influência da indústria tecnológica sobre nosso modo de pensar a uma simples questão de escolha individual. As empresas, inclusive, já perceberam isso – e estão criando nichos de mercado voltados justamente para quem rejeita a tecnologia.
Ainda menos eficazes são as demonstrações – às vezes intencionais, às vezes não – de "pureza pessoal" ao evitar a IA. Já sabemos o que acontece com estratégias baseadas apenas na abstinência. Claro, é importante se desconectar e reduzir o consumo individual, mas isso não basta para gerar transformações estruturais.
nossas vidas online foram transformadas em combustível para uma máquina gigantesca.
O medo de que novas tecnologias nos tornem burros não é novidade. O mesmo aconteceu – e ainda acontece – com as redes sociais, a televisão, o rádio. Mas a questão agora é que, no ritmo atual, a maioria das pessoas não poderá escolher viver sem IA.
Para muitos, a decisão de usar ou não a tecnologia será tomada por seus chefes, pelas empresas das quais compram e pelas plataformas que fornecem serviços básicos. Ficar off-line se tornou um luxo.
FORA DE SINTONIA
Tratar os danos da IA como uma questão de escolha do consumidor é uma resposta que ignora o modelo de negócios e a própria ameaça. Muitas aplicações da inteligência artificial sequer serão percebidas pelos usuários comuns: as empresas que desenvolvem grandes modelos de linguagem estão focadas nos setores corporativo e governamental e já vendem suas ferramentas a eles.
Há um esforço crescente para fazer da inteligência artificial não apenas um produto, mas algo incorporado a toda a nossa infraestrutura digital e física. A tecnologia pode parecer mais visível em aplicativos, mas já está profundamente integrada aos mecanismos de busca.
As era das redes sociais já havia distorcido nossa autoimagem. Agora, a era da IA ameaça apagá-la de vez.
O Google, que antes era um indexador de links, agora é uma ferramenta que responde perguntas com IA. A OpenAI, por sua vez, transformou seu chatbot em um mecanismo de busca. E a Apple quer integrar a inteligência artificial diretamente nos celulares, tornando os grandes modelos de linguagem uma extensão natural dos sistemas operacionais.
O movimento para conter os abusos da IA não pode depender apenas da esperança de que as pessoas simplesmente optem por não usá-la. Deixar de comer carne, evitar produtos com minerais extraídos de zonas de conflito ou apagar as luzes para economizar energia são atitudes válidas, mas não são suficientes. O argumento da pureza, por si só, não dá conta do desafio.
Mesmo assim, há um bom motivo para tentar: precisamos lembrar como é habitar – e viver plenamente dentro – das nossas próprias mentes.