“Desta vez vai ser diferente”: por dentro da bolha da inteligência artificial

Corrida por investimentos, métricas distorcidas e jogos de poder revelam um mercado tão inflado quanto frágil

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David Lidsky 5 minutos de leitura

“Desta vez vai ser diferente.”

A frase clássica de todo estouro de bolha virou o mantra da era da IA. Evangelistas garantem que a tecnologia vai reinventar o mundo e que a especulação bilionária ao redor dela é um mal menor. Já críticos lembram que o frenesi financeiro ameaça a parte “revolucionária” da equação.

Sam Altman resumiu bem a questão: “sim, investidores estão empolgados demais. Mas sim, IA também é a coisa mais importante em muito tempo.” Só que o mercado parece ter ouvido apenas a primeira parte.

No Vale do Silício, há uma fórmula antiga para inflar expectativas: startups se posicionam como “infraestrutura crítica”, escondem custos altíssimos e só depois encaram o problema de rentabilidade. Agora, é a inteligência artificial que segue esse roteiro.

O caso da OpenAI é um bom exemplo. A empresa cobra por seu modelo GPT-4o, mas ao mesmo tempo dá acesso gratuito em produtos como o ChatGPT, minando sua própria receita. O Cursor, editor de código que cresce rápido, foi avaliado em US$ 2 bilhões mesmo com faturamento anual de apenas US$ 10 milhões.

Investidores compram a tese de que, se um produto atrair usuários, o dinheiro aparecerá depois – nem que para isso seja preciso reinventar a matemática da lucratividade. Esse clima lembra os tempos de “crescimento a qualquer custo”.

ARR (receita recorrente anual), antes métrica sólida, hoje é manipulada: empresas contam contratos curtos, renovações incertas ou até acordos de computação como se fossem receitas garantidas. Um truque para justificar valuations cada vez mais inflados.

O MEU É MAIOR

Stargate não é só uma franquia de ficção científica, mas também a joint venture criada para turbinar a expansão dos data centers da OpenAI, uma empresa de “infraestrutura de IA”. Lançada em janeiro com apoio do SoftBank, Oracle e outros, a iniciativa promete investir US$ 500 bilhões nos próximos quatro anos.

Segundo a OpenAI, o projeto vai “garantir a liderança norte-americana em IA, criar centenas de milhares de empregos e gerar enorme benefício econômico para o mundo inteiro” (ênfase deles.)

O primeiro centro, no Texas, começou a operar ainda em obras e promete 357 empregos permanentes quando a construção terminar, segundo a "Bloomberg". Se considerarmos que “centenas de milhares” significa uns 200 mil empregos, seria só uma questão de construir outros 560 data centers iguais. Fácil, né?

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Na prática, a OpenAI chegou a esse número com o velho truque do “impacto econômico”: somando empregos temporários de construção e vagas indiretas em fábricas ou serviços locais.

Mas o que realmente importa é a competição de egos: o data center de Sam Altman ficou maior que o Colossus da xAI de Elon Musk, consumindo 300 MW contra 250 MW do rival. O site Tom’s Hardware até proclamou: “é o maior prédio único do mundo.”

O clima atual lembra os tempos de “crescimento a qualquer custo”.

Calma, porque Musk já trabalha no Colossus 2, em Memphis. Tudo bem que esses projetos ameaçam a estabilidade da rede elétrica e que o Colossus pode até estar envenenando os moradores de Memphis enquanto você lê este texto, mas nada disso importa: Musk simplesmente precisa provar que o dele é maior.

E você não achou que o CEO da Meta, Mark “lutador de vale-tudo” Zuckerberg, ficaria de fora, certo? Em julho, ele anunciou o Prometheus e o Hyperion (apelidado de “The Beast”), data centers com promessa de consumo de vários gigawatts. Como Zuck se gabou: “só um deles já cobre uma parte significativa da ilha de Manhattan.”

Difícil não pensar se esses caras não estão compensando alguma outra coisa.

É O DINHEIRO, ESTÚPIDO

A temporada quente da IA em 2025 não é só sobre quem tem o maior data center. É, como sempre, sobre dinheiro, que pode ser facilmente convertido em status. Exemplos não faltam:

  • Em julho, a ex-CTO da OpenAI, Mira Murati, levantou um recorde de US$ 2 bilhões já na rodada seed para sua nova startup, a Thinking Machines Lab.
  • Em meados de agosto (ou, em “tempo de IA”, há uma eternidade), a consultoria CB Insights contou 498 unicórnios de IA avaliados em conjunto em US$ 2,7 trilhões. A CNBC resumiu: “a IA está criando novos bilionários em ritmo recorde.” Pelo menos no papel.
  • Pesquisadores de elite e engenheiros “10x” passaram os últimos meses trocando de time como jogadores universitários no mercado de transferências. Zuckerberg, por exemplo, ofereceu pacotes de US$ 300 milhões por quatro anos para atrair talentos para a Meta. O golpe final foi contratar o chefe de modelos de IA da Apple com um pacote que deixou o salário do CEO Tim Cook no chinelo.

Enquanto isso, o apetite dos investidores beira o delírio:

  • Empresas como a Meta usam os chamado Veículos para Fins Especiais (VFE,  uma subsidiária criada para um objetivo comercial específico de modo a isolar riscos da empresa-mãe) para financiar data centers fora de seus balanços, escondendo o risco dos acionistas.
bolhas de sabão flutuando no ar
Crédito: Deposiphotos

  • A OpenAI criou seu sexto VFE em poucas semanas – justo antes de alertar investidores sobre os riscos de VFEs que vendem suas próprias ações – buscando mais US$ 69,5 milhões.
  • Fundos de capital de risco agora compram cotas dos VFEs uns dos outros, pagando taxas altas só para ter alguma exposição às estrelas privadas da IA. Tecnicamente, não são acionistas das empresas, mas investidores em outro fundo que investe nelas.

Esse tipo de coisa acontece quando o “dinheiro esperto” se convence de que “desta vez é diferente”.

É verdade que cada uma dessas decisões tem uma lógica aparente. Por que não apostar 1% ou 2% do patrimônio para tentar ser dono do próximo iPhone, ou controlar as “ferrovias” do século 21 (os data centers)? No fim, tudo parece lindo quando se vive dentro de uma bolha de sabão flutuando pelo ar.

Muito cuidado nessa hora. Se alguém te oferecer cotas de um VFE, talvez seja mais seguro gastar tudo em algo palpável, como… um Labubu.


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