Devagarinho, startups de inteligência artificial vão se infiltrando em Hollywood
Novas ferramentas de IA ajudam os cineastas a acelerar seu trabalho. Mas alguns as veem como o último empurrãozinho para o fundo do poço
Keanu Reeves já lutou contra máquinas nas telas do cinema. Agora, suas atuações é que estão servindo como material de aprendizado para as máquinas.
Em setembro, a Lionsgate fechou um acordo com a Runway, permitindo que a empresa de inteligência artificial treinasse um novo modelo de IA generativa em sua extensa biblioteca de filmes e programas de TV, incluindo franquias de sucesso como “John Wick”, “Jogos Mortais” e “Jogos Vorazes”.
O vice-presidente do estúdio, Michael Burns, acredita que a parceria vai economizar “milhões e milhões de dólares”, ajudando os cineastas nos processos de pré e pós-produção.
Esse acordo sinaliza uma mudança na forma como os grandes estúdios encaram o papel da inteligência artificial na produção de filmes. Ela também surge em um momento decisivo para Hollywood e a IA. Como várias outras empresas, a Runway enfrenta desafios legais e reivindicações de violação de direitos autorais em relação ao seu sistema de geração de imagens.
Enquanto os grandes estúdios começam a avaliar discretamente o potencial da inteligência artificial, uma onda de startups e empresas menores está desenvolvendo ferramentas destinadas a aprimorar a criatividade de Hollywood.
Essas soluções locais, criadas por profissionais do setor que entendem os desafios intrínsecos da produção cinematográfica e televisiva, têm como objetivo resolver dificuldades específicas do processo criativo e, ao mesmo tempo, preservar o toque humano que define uma boa narrativa.
O sucesso final dessas ferramentas (e sua aceitação por parte dos profissionais de criação que desconfiam da presença da IA) continua sendo uma questão em aberto em um setor que enfrenta rápidas mudanças tecnológicas.
Uma dessas ferramentas vem de Ryan Turner, diretor de criação da empresa de produção Echobend. Ele lançou um projeto para transformar roteiros em áudio usando IA generativa com a tecnologia da startup ElevenLabs.
O projeto foi inspirado em um problema que Turner costuma enfrentar: tem de 15 a 50 roteiros para analisar e não consegue encontrar tempo para ler durante o dia de trabalho. Ele lia mais em casa, mas tinha dificuldade para continuar olhando para a tela.
Então, imaginou que uma versão em áudio dos roteiros, para ouvir durante o trajeto para o trabalho ou nas sessões de ginástica, poderia ser uma solução viável. E sabia que não era o único a lidar com esse gargalo: o prazo de retorno sobre a avaliação de roteiros costuma ser de semanas, ou até mais. Turner viu aí uma oportunidade.
Embora existam aplicativos de conversão de texto em áudio, a estrutura específica dos textos de roteiros resulta em uma experiência auditiva desagradável, como menções repetitivas de nomes de personagens.
A solução da Echobend, que utiliza mais de 30 vozes, agiliza a narrativa de forma semelhante a um drama de rádio, alternando as vozes dos personagens – embora com certas restrições.
“Se houver uma cena cômica, o programa não vai conseguir acertar o tom”, diz Turner. “Não vai ser uma leitura perfeita, mas você vai entender que era uma piada.”
TRANSFORMANDO ROTEIROS EM CENAS
As startups também estão direcionando suas ferramentas de IA para outras partes do processo de produção. A Lore Machine, uma ferramenta de visualização, permite que os escritores façam o upload de seus roteiros e gerem uma galeria de imagens com personagens e locais consistentes.
Thobey Campion, fundador da startup, prevê um futuro no qual os roteiristas poderão criar e distribuir sua própria mídia digital, possivelmente mantendo mais controle sobre seu trabalho. “O que vimos em Hollywood é que os primeiros a adotar a tecnologia são, na verdade, os escritores”, diz Campion.
Em vez de gerar personagens do zero para cada cena, a Lore Machine utiliza sua biblioteca com mais de três mil poses pré-construídas. Essas poses são modelos 3D mapeados para pontos-chave como mãos, cotovelos e ombros.
Quando um personagem precisa aparecer em uma nova cena, o sistema seleciona uma pose apropriada e aplica o estilo artístico escolhido sobre ela. Essa abordagem ajuda a garantir que os personagens mantenham sua aparência e proporções em diferentes imagens e cenas.
O processamento de texto é igualmente crucial para o sistema. A Lore Machine usa uma combinação de modelos de linguagem pequenos e especializados, que trabalham em conjunto com modelos maiores e mais gerais. Esse trabalho em equipe permite que a inteligência artificial compreenda e visualize melhor os elementos do roteiro.
A Lore Machine e a Echobend não estão sozinhas na tentativa de aplicar a IA generativa às margens da produção cinematográfica. Startups e ferramentas como OneDoor, Charismatic.ai e Storyboarder.ai prometem ajudar na criação de roteiros.
Essas soluções criadas por profissionais do setor visam resolver dificuldades do processo criativo sem perder o toque humano.
A Cinelytic lançou uma ferramenta para oferecer feedback sobre roteiros com inteligência artificial generativa. Outros aplicativos visam ajudar a automatizar as tarefas de marcação e edição de vídeo e melhorar os efeitos visuais.
Apesar disso, Philip Gelatt, roteirista que recentemente trabalhou em um projeto de mangá gerado por IA para a HP Omen (marca de PC gamer da Hewlett-Packard), continua cético. “Sou totalmente contra a inteligência artificial”, afirma.
Gelatt se limitou a enviar seus textos para que outra pessoa os inserisse na Lore, mas a experiência com a tecnologia o deixou inseguro quanto à competência da IA para auxiliar a criatividade.
Apesar de suas preocupações, Gelatt reconhece o potencial do uso da tecnologia em nichos, principalmente para criadores com recursos limitados. “Provavelmente há certos usos e recursos que valem a pena”, admite.