Do papel para o código: o livro que previu a IA como professora e guardiã
No mundo real, o ensino com IA pode moldar o comportamento de gerações inteiras e ser usado para doutrinar, silenciar ou vigiar

Cada nova notícia sobre avanços em inteligência artificial parece trazer à tona um fragmento da ficção científica se tornando real. Nos últimos tempos, tenho notado paralelos inquietantes com o romance “A Era do Diamante” (“The Diamond Age: Or A Young Lady’s Illustrated Primer”), de Neal Stephenson, publicado em 1995.
A obra descreve um futuro pós-ciberpunk dividido em tribos culturais chamadas phyles, onde a nanotecnologia avançada é onipresente e uma nova forma de IA – representada por um dispositivo de ensino com IA – transforma a vida de sua usuária.
Inspirado por nomes como Eric Drexler, pioneiro da nanotecnologia no MIT, e pelo renomado físico Richard Feynman, o romance imaginava avanços que ainda não alcançamos na nanotecnologia.
No entanto, a inteligência artificial presente na história – particularmente o Primer, um “livro” interativo de aprendizado – já é quase realidade. E levanta questionamentos sérios sobre o papel da IA no trabalho, na educação e no comportamento humano.
Na história, o Primer parece um livro físico, mas suas páginas são telas capazes de exibir animações, textos e responder em tempo real. Também conta com narração por voz e serve como companheiro, contador de histórias, professor e figura parental para Nell, uma garota órfã nas ruas de uma Xangai futurista.
O dispositivo se adapta emocional e intelectualmente à criança, ensinando desde matemática até artes marciais e etiqueta social.
TECNOLOGIAS REAIS ULTRAPASSAM A FICÇÃO
Três desenvolvimentos recentes indicam que a criação de um Primer real não é mais algo reservado à ficção científica.
Em maio de 2025, o videogame Fortnite introduziu uma versão em IA do personagem Darth Vader, usando a voz sintetizada do falecido James Earl Jones. Apesar da autorização do espólio do ator, o sindicato dos atores dos EUA (SAG-AFTRA) denunciou a desenvolvedora Epic Games por violar acordos trabalhistas ao evitar contratar atores reais.
Curiosamente, na ficção de Stephenson, os personagens do Primer eram dublados em tempo real por atores humanos, chamados de “ractors”. Já no presente, a IA é capaz de fazer isso sozinha, superando a previsão do autor.

Outro avanço veio com tecnologias vestíveis que gravam todas as conversas do usuário e as enviam a servidores para análise por IA. A colunista Joanna Stern, do "The Wall Street Journal", testou um desses dispositivos e relatou que ele forneceu resumos úteis e listas de tarefas, mas também guardou “cada comentário bobo, privado e constrangedor”. As preocupações com privacidade e vigilância são evidentes.
Apesar de hoje essas tecnologias fornecerem apenas análises posteriores, o passo seguinte é claro: orientações em tempo real, como faz o Primer, durante interações sociais.
ENSINO COM IA: EDUCAÇÃO OU ENGENHARIA SOCIAL?
O Primer não apenas ensina conteúdos escolares – ele também molda o comportamento e as decisões morais de Nell. E, em certa medida, as ferramentas de IA atuais já fazem isso.
Pesquisas mostram que a IA pode ser mais eficaz que professores humanos em áreas como ciência da computação. Em algumas instituições, assistentes de ensino baseados em IA já estão sendo integrados às salas de aula.
Os benefícios são claros: acesso mais democrático à educação, redução de custos e personalização. Mas há riscos, especialmente se tais tecnologias forem distribuídas em massa.

No livro, uma versão do Primer é entregue a milhares de meninas chinesas sem acesso à educação. Isso resulta em uma geração inteira de jovens altamente treinadas, influenciadas por narrativas criadas por IA e manipuladas para servir aos interesses da personagem principal, Nell, que assume um papel de liderança quase mítica.
A mesma lógica pode ser aplicada ao mundo real: IA onipresente, moldando gerações, pode ser usada para doutrinar, silenciar ou vigiar. Uma IA “amigável” pode se tornar o novo rosto do Big Brother – uma presença em quem confiamos desde a infância.
A linha entre educação e engenharia social se torna tênue. O desafio não é só técnico, mas ético: como ensinar jovens a pensar por si mesmos quando a própria ferramenta de aprendizado molda seus pensamentos?
Este artigo foi republicado do "The Conversation" sob licença Creative Commons. Leia o artigo original.