Documentário feito com IA mostra uma versão diferente para cada espectador

O filme de Gary Hustwit sobre o lendário músico utilizou uma tecnologia criada por ele mesmo – e que pode revolucionar a produção de cinema

Crédito: Film First

Thom Geier 4 minutos de leitura

Quem disse que um filme precisa ser algo fixo, sempre igual, não importando quantas vezes damos o play? O cineasta veterano Gary Hustwit derrubou esse conceito com seu aclamado documentário sobre Brian Eno – um pioneiro da indústria musical dos anos 70 e 80. O diretor usou um programa de inteligência artificial sob medida para criar um filme radicalmente diferente a cada exibição.

O filme foi um sucesso no Festival de Sundance de 2024 e depois passou por grandes cidades, em meados do ano passado (com uma nova versão sendo exibida a cada dia). Depois, o longa chegou às casas do mundo todo em um evento de transmissão ao vivo de 24 horas, na sexta-feira (dia 24), a partir das 10h (horário de Brasília).

Foi a primeira oportunidade para muitas pessoas assistirem a "Eno" e verem várias iterações de um filme que reúne 500 horas de material do arquivo pessoal. O documentário sobre Brian Eno também inclui 50 horas de vídeo que Hustwit gravou do músico e de antigos colegas falando sobre quando fundou a banda Roxy Music e quando, mais tarde, passou a produzir hits inovadores para David Bowie, U2, Talking Heads, entre outros.

O documentário sobre Brian Eno não é uma mistura aleatória de clipes de vídeo. Cada versão começa com uma entrevista com ele no estúdio e termina com outra cena do músico em seu jardim cheio de rosas, criando uma espécie de “moldura” para a exploração de sua abordagem orgulhosamente experimental do trabalho.

Mas isso é só o começo (e o fim). Cerca de 70% do filme muda a cada exibição, graças a um programa complexo que Hustwit desenvolveu com Brendan Dawes, um artista digital que cuidou de toda a programação da plataforma original e que a dupla apelidou de Brain One (um anagrama do nome do músico que é o tema do filme).

“Tem todo tipo de programação acontecendo na forma como o sistema escolhe as cenas, onde as coloca no arco do filme e o que ele vai puxar para conectar com essas cenas”, explica Hustwit. A duração do filme varia entre 80 e 87 minutos, e nenhuma versão é igual à outra.

Brian Eno (Crédito: Cecily Eno/ Film First)

O CÉREBRO DE BRIAN ENO

O formato do filme combina com a natureza iconoclasta de Eno, que foi pioneiro da música “ambiente” nos anos 1970 e, nos anos 1990, se tornou um dos primeiros a defender softwares de composição musical, chamando-os de música generativa.

Eno rejeitou propostas anteriores de Hustwit para participar de um documentário, mas foi convencido pela tecnologia auxiliada por inteligência artificial desenvolvida para o projeto. “Ele foi muito claro ao dizer que ninguém tem apenas uma história sobre si mesmo”, conta Hustwit.

Gary Hustwit (Crédito: Film First)

“Essa abordagem combina com a maneira como ele faz música, essa ideia de que estamos plantando as sementes de um filme e que depois só observamos essas sementes crescerem. É quase como se estivéssemos dentro do cérebro de Brian, pulando entre diferentes décadas, projetos e ideias. E cada vez é um conjunto diferente dessas memórias, o que é mais ou menos como nossa memória funciona – a gente nunca se lembra das coisas da mesma forma.”

A primeira versão de "Eno" que Hustwit e Dawes criaram foi uma peça de vídeo arte gerada por IA de 168 horas chamada "Nothing Can Ever Be the Same" (Nada Nunca Será Igual, em tradução livre), que eles estrearam na Bienal de Música de Veneza em 2023 como uma espécie de prova de conceito experimental para sua tecnologia generativa.

A partir daí, a dupla desenvolveu uma plataforma que seleciona e organiza centenas de arquivos de vídeo em 4K, cada um com sua própria trilha de áudio 5.1, enquanto também cria cenas de vídeo e transições totalmente originais em tempo real.

Gary Hustwit e Brendan Dawes (Crédito: Film First)

Hustwit e Dawes continuaram ajustando o documentário sobre Eno desde sua estreia em Sundance, não só aperfeiçoando o software, mas também adicionando novas cenas editadas que podem ser incluídas.

O maior desafio agora é escalar sua visão de produzir uma versão única para cada espectador. “No momento, estamos nos propondo a fazer um filme em tempo real por dispositivo para cada audiência.”

UMA IA REALMENTE GENERATIVA

"Eno" pode ser o começo de um novo gênero de filmes generativos. Hustwit e Dawes têm uma patente pendente para o Brain One e estão trabalhando com cineastas sob sua marca Anamorph para ajudar a criar outros filmes impulsionados por IA que também mudam a cada exibição. Dois desses filmes, ambos documentários, já estão em produção e provavelmente serão concluídos até o final do ano.

A Anamorph está em negociações com vários cineastas (que Hustwit ainda não divulgou) interessados em usar a tecnologia para fazer filmes de ficção – uma possibilidade que pode romper os limites do que é possível no cinema, de modo que se assemelhem mais a videogames ou livros de RPG do tipo “escolha sua própria aventura”.

Crédito: Film First

Hustwit reconhece que esse método personalizado de fazer filmes não é para todos e que a maioria realmente precisa ser feita de uma maneira mais tradicional e linear.

Ele também tem noção do quanto "Eno" é radical. “É muito diferente de como a maioria dos cineastas trabalha – essa ideia de que você não controla mais cada segundo do filme. Isso é assustador para alguns cineastas”, ele diz. Mas “há certa liberdade em simplesmente dar um passo atrás e ver o que acontece.”


SOBRE O AUTOR

Thom Geier é editor e escritor especializado em negócios e cultura pop. saiba mais