Escassez de dados confiáveis ameaça a evolução da inteligência artificial
Especialistas alertam que reconstruir a confiança na tecnologia é o verdadeiro desafio da era da inteligência artificial

A inteligência artificial promete um futuro mais inteligente, rápido e eficiente. Mas, por trás desse otimismo, há um problema silencioso que só cresce: os próprios dados. Fala-se muito sobre algoritmos, mas pouco sobre a infraestrutura que os alimenta.
A verdade é que a inovação não consegue superar a qualidade de seus insumos – e, neste momento, esses insumos mostram claros sinais de desgaste. Quando a base começa a rachar, até os sistemas mais avançados falham.
Há uma década, era possível combinar escala e precisão. Hoje, contudo, esses objetivos muitas vezes se chocam. Regulamentações de privacidade, exigências de consentimento em dispositivos e novas restrições de plataformas tornaram mais difícil do que nunca capturar dados primários de alta qualidade.
Para preencher a lacuna, o mercado se inundou de sinais reciclados, falsificados ou inferidos, que parecem legítimos, mas não são.
O resultado é uma nova e estranha realidade em que um shopping fechado há dois anos ainda registra “fluxo de pessoas”, ou uma concessionária de carros aparece como movimentada à meia-noite. Esses exemplos podem parecer falhas inocentes, mas na verdade revelam um ecossistema de dados que prioriza quantidade, não credibilidade.
QUANDO O VOLUME VIRA RUÍDO
Por anos, acreditou-se que mais dados significavam melhores insights. Volume era sinônimo de força. Mais entradas significavam mais inteligência. Mas, agora, abundância equivale a ruído.

Para preservar escala, alguns fornecedores recorreram a dados de preenchimento ou sinais falsos, que deixam dashboards com aparência saudável enquanto corroem sua confiabilidade e autenticidade.
Quando dados ruins entram no sistema, separá-los se torna quase impossível. É como misturar flocos de cereal vencidos em uma caixa nova: você não sabe quais estão estragados, mas sente a diferença. Em escala, essa diferença se multiplica exponencialmente.
O PARADOXO DA IA
Ironicamente, a inteligência artificial é tanto parte do problema quanto da solução.
Todo modelo de linguagem depende de dados de treinamento. Se essa base está comprometida, os insights produzidos também estarão. Se você alimenta o sistema com lixo, ele devolverá conclusões erradas – com muita convicção.
Quem usa o ChatGPT provavelmente já sentiu essa frustração. Embora seja uma ferramenta extremamente útil, há momentos em que ainda fornece respostas imprecisas ou alucinações.
essas falhas revelam um ecossistema de dados que prioriza quantidade, não credibilidade.
Você faz uma pergunta e ele entrega prontamente uma resposta detalhada, com absoluta segurança… só que está tudo errado. Por um instante, soa convincente o bastante para enganar. Mas, quando você percebe o erro, nasce uma semente de dúvida.
Depois de algumas ocorrências, essa dúvida toma conta. É isso o que acontece quando a qualidade dos dados se deteriora: a narrativa parece completa, mas você não tem certeza do que é real.
Ao mesmo tempo, a IA oferece novas ferramentas para arrumar a bagunça, identificando inconsistências. Um restaurante que recebe visitantes aos domingos, mesmo fechado? Um shopping desativado que de repente parece “movimentado” de novo? São padrões que a IA pode detectar, se for treinada corretamente.
Ainda assim, nenhuma empresa consegue resolver isso sozinha. A integridade dos dados depende de toda a cadeia – de quem coleta e agrega aos analistas e usuários finais – assumir a responsabilidade pela sua parte no processo. O progresso virá não de mais dados, mas de mais transparência sobre os dados que já existem.
QUALIDADE ACIMA DE QUANTIDADE
Não podemos mais assumir que mais dados significam automaticamente melhores dados, e tudo bem.
O foco precisa migrar de coletar tudo para selecionar o que importa, construindo fluxos de dados confiáveis que possam ser verificados. Conjuntos mais enxutos, baseados em sinais robustos, geram insights mais claros e defensáveis do que montanhas de informações duvidosas.
Muitas organizações ainda associam tamanho à credibilidade. Mas a verdadeira pergunta não é quanta informação você tem, e sim quão verdadeira ela é.

Só que mudar a forma como as pessoas pensam sobre dados é mais difícil do que mudar a tecnologia. Equipes resistem a novos fluxos de trabalho. Parceiros temem que “menos” signifique perda de visibilidade ou controle. Mas conjuntos menores (e mais inteligentes) muitas vezes revelam mais do que os maiores, justamente porque seus dados são reais.
Quando a confiança se perde, os insights perdem valor. Reconstruir essa confiança por meio de transparência, validação e colaboração tornou-se tão crítico quanto os próprios algoritmos.
A IA não vai eliminar o problema dos dados, vai ampliá-lo. Precisamos ter disciplina para separar dados válidos de ruído e coragem para admitir que mais nem sempre é melhor. Porque a verdadeira vantagem não está em ter dados infinitos, e sim em saber o que deixar para trás.